10/07/2015

13 - Andando nas retas, quebrando as esquinas


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         Não foi propriamente um sábado dos mais produtivos... Por falta de quórum, o ensaio da Zás-Brás, até então matinal, foi automaticamente transferido para a tarde. E a tarde (como a maioria dormiu até tarde) realmente começou tarde... Já a manhã, por coincidência, terminou cedo demais.
         A este compreensível deslocamento temporal, ainda que inesperado, agregou-se a súbita convocação do grupo por parte da direção da FIAP, o Festival Internacional de las Artes del Palco, para uma reunião imediata, para tratar, ainda, dos problemas da organização e programação do evento. A mensagem/convite/convocação chegou através de Amanda Onça, que apareceu no hotel, ainda sonada, pouco antes das 14h. De manhã bem cedo, a caminho da casa e da cama, o dia ainda clareando, exausta pela longa conversa tresnoitada com Rolé (que acabara de tomar um táxi-lotação), Amanda, por acaso, deu de cara com um dos organizadores do evento, Javier de la Torre. Ganhou dele uma bronca matinal: "Onde anda a Zás-Brás, que não consigo falar com nenhum de vocês?!"...
         Ataque que não chegou a lhe tirar, de todo, o sono... Dormiu o mínimo necessário (não aguentaria menos de seis horas) e, aí sim, partiu para o Hotel Victoria. Ninguém na piscina ou no bar... Tomou logo uma atitude teatral. Pegou o telefone da recepção e, ligando para cada quarto, comunicou: esperava a todos no saguão, acordados ou não, e era urgente!... Reunidos, em pouco, ainda que surpresos, decidiram atender ao chamado, ainda mais depois de Amanda informar o local da reunião, às 16h: o bar La Bodeguita del Medio,  ponto turístico dos mais afamados de Cuba!
         A essa altura o almoço do hotel já era, providenciaram sanduíches e refrigerantes. Enquanto comiam Leonil, muito animado, fez as contas: a pé, em menos de uma hora estariam lá, sobrava tempo...
         - Afinal, não há turista, dos que se prezam, que não ande muito!... Exceto, talvez, os do turismo-executivo, que nem conhecem as cidades de seus eventos... Os que fazem turismo cultural têm mais é que andar!...
O táxi americano do Che
         Valeu a sugestão. Decidiram simplesmente andar até o miolo de Havana Velha, onde está La Bodeguita. Mas, nada de baixar por La Rampa, nem se respingar no Malecón. A proposta era caminhar pelas entranhas da cidade, por ruas comuns, de El Vedado até Habana Vieja, atravessando todo o bairro que os mapas chamam de Centro Habana.
     
Partiram... Do hotel, esquina de 19 com M, desceram à Rua O, para subir à direita e passar em frente ao promontório dominado pelo Hotel Nacional. À frente da esplanada uma paradinha: quem resiste a apreciar os carros históricos, táxis que fazem ponto por lá?...
         Daí, desceram a O, agora para o outro lado, e atravessaram La Rampa, a Rua 23. A área, se não chegava a ser muito elegante, apresentava alguns hotéis e uns prédios confortáveis. O mais interessante deles, com uma grande varanda em cada andar, no entanto, não é residencial: é do Ministério da Justiça, a placa informa.
As varandas da Justiça

Atraídos pelo prédio do Hotel Habana Libre, que acompanhava à direita a caminhada, tomaram a Rua 25 por dois quarteirões e subiram até a sua esquina. Aí abriram-se os desentendimentos... Quando Gastão viu, parado no ponto, do outro lado da esquina do hotel, o vermelho vivo do ônibus panorâmico, ah, foi difícil convencê-lo a continuar a pé!... Só Leonil conseguiu acalmá-lo, propondo ir, no dia seguinte, até o ponto de partida, em frente ao Hotel Inglaterra, em Havana Velha, para fazer o roteiro completo, se não podiam ficar no prejuízo...
O ônibus de turismo na Rua L
    
Voltaram à caminhada, na direção geral do Centro, pela movimentada e larga Rua L, com seus prédios de quatro andares e alguns sobrados, todos tão ou mais antigos que os carros que passavam... Logo à frente, demarcada pelas colunas da Escola de Ciências Comerciais, o campus da Universidade de Havana. 

As colunas da Universidade
E em frente, marcando uma divisão de rumos, a Praça Julio Antonio Mella, em homenagem a um revolucionário cubano muito anterior à própria Revolução Cubana, um dos líderes da insurgência contra a dominação americana da ilha, que decorria da ocupação militar americana posterior à guerra hispano-americana de 1898, que essa história é longa e antiga...

A coluna do revolucionário
Exilado em 1926, Julio Antonio Mella foi assassinado, no México, em 1929, jamais voltou a Cuba. Mas, não foi esquecido e a sua mais inspiradora máxima está reproduzida na placa do monumento: "Lutar pela revolução social na América Latina não é uma utopia de loucos ou fanáticos, é lutar por um próximo passo de avanço na História".

         Tomando à esquerda, caminho natural nesse caso, avançaram pela Av. San Lázaro, longa via que vai dali até a boca da baía de Havana, já percorrida nas corridas noturnas de táxi. Logo à frente, nas quebradas da esquina da Rua Basarrate com a Concórdia, lá estava a pintura do Che, revolucionário mais recente, uma imagem recorrente, homenagem particular na empena meio cega do prédio, que, espremido, cresce para o alto...
O Che da esquina


         - A Concórdia é o caminho mais direto para a nossa meta! – Raíssa garantiu, consultando o celular. – Digo, a Rua Concórdia... Ao menos, nessa área de Havana. Fora daqui, em outros caminhos, aí não garanto nada... 
Andando na Concórdia
         Sim, a providência de fotografar o mapa da cidade mostrara-se útil... Tomaram então a reta da rua, rumo a Havana Velha. À frente do grupo, Eliete e Elói, encantados e afoitos. Nas laterais da, rua de calçadas modestas, uma sucessão regular de sobrados, e um ou outro prédio de três andares. Nas fachadas das mais diversas cores, curiosos arcos, variadas grades nas varandas, desvarios nas esquadrias... E na rua, descansada de carros, no quase silêncio da tarde nublada de sábado, uma gente à vontade, conversas soltas nas soleiras das portas, presenças amigas à beira das janelas, encontros relaxados nas curvas de esquinas...


         Mais para trás foram ficando Egberto e Amanda, concentradíssimos na conversa sobre o imenso potencial teatral do povo cubano, considerações sobre como se transmudaram, nas últimas décadas e mundo a fora, nos mais diferentes papéis sociais, políticos e militares, muito mais do que teatrais.

O velhinho do pão
         Os demais iam ciscando, uns comentários aqui, uns risinhos ali... Assim seguiram por meia dúzia de quarteirões da Concórdia até que, de repente, sem atender a chamados, Rolé, que parecia ansioso, quiçá aborrecido, deu uma queda de asa para a direita. Perto dele, envolvida em fotos, Raíssa se assustou e, só então, olhando em volta, se reorientando, reparou na evidente intimidade da conversa do casal retardatário... 

         Na cola de Rolé, pegaram a Rua Neptuno, a primeira paralela, eixo residencial de Centro Havana, um bairro que é, na prática, a transição entre o residencial Vedado e a histórica Cidade Velha. Uma rua mais larga e movimentada, àquela hora com trânsito leve, poucos carros: calma o bastante para permitir ao velhinho comprar seu pão na padaria...

          No geral, construções na escala humana, nesse trecho incluindo até uma igreja, para o sempre espanto de cético Elói. Continuavam predominando prédios de dois ou três andares, como se Havana ainda fosse criança, não tivesse crescido tanto quanto Paris, por exemplo, com seu padrão de prédios de seis andares.

Rua Neptuno através das grades
Ou, por outro lado, como se estivesse muito longe da maturidade "turbinada" das cidades entulhadas de arranha-céus, como tantas pelo mundo, e Panamá City estava ali perto, como amostra... 
E na rua tranquila a presença de um comércio também leve, algumas lojas de roupas ou de móveis, sempre lanchonetes e bares, algumas vezes mesmo através das grades da janela da casa do comerciante...

A carrocinha de legumes

         Eliete, muito interessada em relações socio-gastronômicas, parou para observar a carrocinha de legumes. Concluiu que em Cuba come-se praticamente o mesmo que no interior do Brasil. No interior, não nas cidades brasileiras, porque a comida industrializada é muito menos comum em Cuba (mais um subproduto do bloqueio americano) do que é no Brasil.

A velhinha do amendoim

      

         Outro que se abancou um tempo foi Leonil, de repente decididamente apaixonado pela velhinha vendedora de amendoim torrado, de quem comprou um punhado para distribuir à turma. Manteve-se firme por fora, como sempre, mas se derreteu todo por dentro: ficou imaginando sua avozinha ideal (ele que não conheceu nenhuma das duas) vendendo amendoim nos trens da Central do Brasil...

Passando bem

         Uns e outros paravam nos detalhes da rua, enquanto o tempo universal e as pessoas locais continuavam passando. Pessoas constroem as coisas mais sólidas do mundo, mas não têm sossego... Entre as mais estáveis, naquele caminho, os prédios oficiais. O posto de serviços de saúde, por exemplo, não tinha qualquer procura àquela hora, aparentemente fechado, enquanto seus usuários passavam bem...

A renovação da tradição heróica
         Sempre em destaque em todos os prédios públicos, embora surrada no tempo, a Revolução de 1959, o Che sempre presente, ainda que meio apagado. Presença que, de qualquer modo, foi reanimada nos últimos anos, como parte do esforço de sair de tempos difíceis, pelo laço político e econômico possível para Cuba, o reforço da bem-vinda e companheira colaboração bolivariana da Venezuela de Hugo Chávez. 


         Todo grande período histórico, com o tempo, vai se enchendo de ironias... É também o caso da "grande parada" econômica cubana, que, entre bloqueios e derrubadas, durou praticamente toda a segunda metade do século XX, entrando pelo XXI. Nessas grandes vias, não faltam mãos-duplas: se os carros de     Cuba viraram peças vivas de museu, as comidas cubanas foram menos envenenadas por processos industriais. Implicitamente, dado que os cubanos gostam de discutir sobre tudo, é também uma questão que não falta no cardápio e nas conversas da cafeteria Los Parados, ainda na Rua Neptuno: estará Cuba parada no tempo?...

Los Parados em Centro Havana

         O fato é que, na tarde, a dispersão do passeio levou a Zás-Brás a um generalizado atraso: continuavam todos na parada, só que muito devagar... E, fato comum no país que visitavam, grandes questões se amontoavam. Raíssa, por exemplo, continuava intrigada com a interminável conversa entre Egberto e Onça, rolando sempre mais de um quarteirão atrás de todos... 

A elegância do Telégrafo
         Na chegada ao Paseo de Martí, um bulevar tropicalizado, a parada foi do até então inerte Gastão, que viera atravessando Centro Havana com ar de enfado. Não resistiu ao estilo europeu do hotel Telégrafo: "Depois da árida travessia do grande deserto popular da cidade de Havana, enfim um vislumbre de luxo, um pouco do alto estilo das elites ocidentais!"... Se não falou em voz alta, certamente pensou...

O mendigo da praça
         Mas, na vida, como se sabe, a ironia está sempre presente... Nem luxo nem pobreza são privilégios do capitalismo, nem tudo é necessariamente questão de excesso ou falta de dinheiro... No que Gastão virou a esquina (ainda embevecido com os detalhes do empertigado Hotel Telégrafo, que, diz a placa, hospedou, em 1886, o "famoso arqueólogo alemão" descobridor da Tróia homérica na Turquia e dos tesouros das tumbas de Micenas na Grécia, justo onde agora ele não estava hospedado...), eis que deu de cara com um mendigo que lhe pareceu muito mal humorado, não apenas um pobre assumido, até mesmo um dissidente existencial...

         Um tanto chocado, Gastão agora era mais um viajante desarvorado no Paseo de Martí... Não saberia mesmo aonde ir se não visse do outro lado a inconfundível figura de Rolé, que continuava a mil... Numa das quinas do Parque Central, grande praça retangular cercada de hotéis, Rolé, desorientado, ameaçava seguir em várias direções...
A oferta das charretes
         A vantagem é que dava tempo para que os companheiros de caminhada fossem chegando, boa oportunidade para que se reunissem. Demorou um pouco, mas, afinal, todo o grupo girava em torno de Rolé, que continuava inquieto... A questão agora, além de achar o caminho para La Bodeguita, era descontar a atraso: já passavam das 16,30h!... Este reunir-se tomou-lhes mais vinte minutos, até retomarem ao rumo: recusando, de passagem, convites para passeios de charrete, pegaram, à esquerda, a pé, a Agramonte.

Pelos fundos, o Museu da Revolução
         Nisso, mais tempo perdido... Em vez de seguirem logo pela Empedrado, contornaram o Museu Nacional de Belas Artes, passaram pelos fundos do Memorial Granma e entraram, meio desnorteados, pela Rua Tejadillo. Resultou em alguma estranheza, mas não tinham tempo para conferir a estranha estrutura de vidro e de metal, o prédio resguardado por um tanque de guerra e um monomotor, os veículos meio que estacionados no jardim... 

         - É o Museu da Revolução, otários!... – Rolé, com precisão, explicou. –  Ou melhor, é o anexo do Museu da Revolução, que fica lá do outro lado.
         "Depois a gente volta aí!..." ficou sendo a decisão geral, até porque já passavam das cinco da tarde e baixara a maior responsabilidade sobre eles.

Turistas e cubanos
         Sim, estavam atrasados e de novo, agora na Av. Bélgica, um pouco perdidos... Em suma, outros longos minutos em várias direções, até finalmente entrarem pela Rua Empedrado, assumindo a direção do La Bodeguita, seguindo o fluxo de turistas e o contrafluxo de locais.
Noiva posando na rua

          Realmente, como que sintetizando a Cuba atual, também naquela rua e naquele bar, o que não faltava era turista!... E mesmo turistas internos: mais uma vez uma produção externa de fotos de noivos, no meio da rua, praticamente à frente do La Bodeguita del Medio. 
         - Gente, se tudo isto, a presença do povo nas ruas, a sua criatividade tirada do nada e até o acolhimento do turismo mais desbragado, acaba criando, afinal, este animadíssimo estado de espírito, pensem bem: não será desse mesmo jeito, por acaso, que se fará o próprio socialismo?...

Os turistas no balcão

         Meio confuso, até mesmo para a própria teórica, Eliete. Além do mais, o problema é que o socialismo, ali, estava meio lotado... Ainda bem que a reunião seria no segundo andar, Amanda de repente se lembrou, e logo o imaginaram mais vazio. Tanta gente no térreo, que foi difícil subir as escadas, atravessar a massa de gringos que batalhavam um mojito no balcão. 

Cerveja e celular em La Bodeguita

         Muita confusão também no segundo andar, quase todas as mesas ocupadas. Talvez porque turista não tenha hora certa para comer. Aqueles tanto podiam estar ainda almoçando, quanto descansando das caminhadas no fim da tarde ou até mesmo, famintos, antecipando o jantar. A melhor jogada parecia ser, Eliete apurou, pedir uma "roupa velha", talvez uma alusão ao estado dos clientes, na verdade um prato à base de carne desfiada e bem temperada, acompanhada de uma mistura muito própria de arroz graúdo com feijão sem caldo, e nisso bem diferente do feijão-com-arroz brasileiro.    
 
         Bem, havia ainda o terceiro andar, e lá (que surpresa!), ninguém. Apenas os funcionários do bar, que não sabiam nada sobre o pessoal do Teatro de Cuba nem da tal reunião. Em compensação, deram garantias de que um grupo musical estava chegando, seria melhor garantir logo umas mesas...

Os mojitos de Hemingway
         Na verdade, o espetáculo já começara: no balcão, sob o painel de azulejos, que enquadrava Hemingway e alguém mais (quem?...), o barman arrumara cuidadosamente umas dezenas de copos. E, produção em série, passou a encher cada um: primeiro, uma porção de açúcar, depois, um galho viçoso de hortelã, em seguida água com gás, e, finalmente, uma boa dose de rum Havana Club, aquele que um dia já se chamou Bacardi. Depois, era retornar ao primeiro e dar uma forte remexida em cada um: estava pronta mais uma remessa de mojitos. Dos bons, daqueles que Hemingway recomendara: "meu mojito na La Bodeguita, meu daiquiri no El Floridita". Tanto que sumiram rápido, o consumo no bar era alto...

         No que tomou posições nas mesas do salão, o elenco da Zás-Brás, meio que rapidamente, estabeleceu um consenso: experimentariam o típico coquetel cubano, o famoso mojito, e pediriam uma porção de ropa vieja suficiente para todos. Ou seja, simplesmente voltariam a se comportar como turistas normais...

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PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:

Russa Pimentel  Ufa, cansei dessa "descrição" toda!... Não vou nem comentar, até mesmo porque não sei se concordo com tudo.
Amanda Onça  Olha só, pessoal, na boa: eu fiz o meu melhor. Não quis ofender ninguém, mas também não tenho que dar satisfação de nada. Se alguém não gostou, azar…
Eliete Barbosa  Sério mesmo, no popular: come-se bem em Cuba!...

Berto Triz Tonho  Bem, pessoal, só tenho a dizer que foi uma tarde aprazível, e a noite também, todo mundo muito civilizado e gentil. Espero que ninguém tenha ficado incomodado ou ressentido por qualquer coisa.

Leonil de Moura Meu irmão, só quero dizer o seguinte: o ser humano é o melhor que temos. O que ele faz é que, às vezes, é duvidoso...

Elói de Holanda Foi uma boa caminhada. E a Bodeguita também valeu. Me impressionou, com aquelas escritas e assinaturas pelas paredes, e tantas fotos... Parecia um templo!
Gastão Cavalcanti  Ah, tudo bem, foi um bom passeio... Mas, cansou. Ainda bem foi dos poucos.
Rolé de Matos  Desorientado é o cacete!