5/14/2015

09 - A noite baixa no Malecón

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De repente, o elenco da Zas-Brás cresceu e Egberto, de forma simples, explicou como e porquê. Conhecia Tâmara há vários anos, dera palpites na direção do monólogo Nas Ventas da Onça, com que ela fizera sucesso, entre os amigos e alguns mais, nos circuitos de centros culturais do Rio de Janeiro e entorno, e em palcos alternativos. Havia pouco, reencontraram-se, pelos meios virtuais, e ele soubera da participação dela no FIAP, o Festival Internacional de las Artes del Pueblo, em Cuba. Como estava mesmo pensando em acrescentar nova personagem, exatamente com aquele tipo de perfil, à próxima peça a ser montada pela Zás-Brás, cujo projeto apresentaria na reabertura da temporada de editais artísticos da Funarte, iniciou conversa sobre as possibilidades de Tâmara Mendonça, a sensual Amanda Onça, integrar-se à comunidade Zas-Brás. A Onça mostrou-se interessada pela ideia de acompanhar o grupo em sua apresentação no 7o. World Artistic Forum, o WAF7, em Medellín, Colômbia, prevista como ponto alto da viagem. Este reforço trazia um pouco mais de equilíbrio ao placar do jogo dos gêneros: a relação entre homens e mulheres mudava de 5x2 para 5x3... E a sua inclusão ainda afetava outras instâncias das relações sociais internas: alterava a média etária (alguém na faixa dos 30, entre coroas sessentões) e as questões étnico-sociais (uma mulher negra, de origem popular, ocupando seu justo, e mínimo, lugar num grupo predominantemente branco e de classe média). 
A vista do Hotel Victoria

É bem verdade que no intervalo da estreia do Brasil, Egberto, antes de sacramentar a proposta com a apresentação triunfal de Amanda Onça, deu uma parada para pensar na questão. Com o olhar perdido em direção aos casarões e prédios típicos de Vedado, todos dos anos 1950, Egberto fez a última pesagem dos teatrais prós e contras. Concluiu que havia apenas um grande perigo para a unidade e para a produtividade da Zas-Brás, que era um mal que poderia assumir outros nomes e formas, que era talvez a mais dramática (se não trágica) herança dos teatrais deuses gregos (e de outros): o mal e velho Ciúme (assim, em caixa alta, respeitosamente). Um perigo e tanto... No entanto, Egberto (neste caso, talvez apoiado no seu personagem Berto Triz Tonho) era otimista: pensava conhecer bem as suas malícias e que saberia se cuidar bem. Respirou fundo e, (quase) tranquilo, decidiu: "Deixa comigo!...".
No bar do hotel, as três mulheres assumiam o comando das conversas, enquanto os homens ainda tentavam fazer o rescaldo do futebol, até que o espaço ficou pequeno para todo aquele entusiasmo (e alguma decepção com a seleção) e não havia mais condições de continuarem enfurnados ali. Afinal de contas, o que estava lá fora era simplesmente Havana, capital de Cuba, e louca para ser desbravada por todos!... Sem mais delongas, amaram a sugestão de Onça, de começar este aprendizado pelo Malecón, uma das fundamentais atrações de Havana, que estava ali, a poucos quarteirões, e ainda mais em um fim de tarde, à disposição de todos.  

Por-de-sol em Vedado
Completamente despreocupados (como se fosse a seleção brasileira entrando em campo, talvez), desceram a Rua 19 em direção ao mar, com Egberto insistindo em lembrar a todos, talvez esgarçando de vez o seu duvidoso humor, que, para evitar problemas, deveriam evitar ultrapassar o Malecón, porque, no rumo norte, a apenas 150km dali, estavam os americanos, sempre de olho em tudo... Ora, quem vai para o norte tem o oeste à esquerda e realmente, lá ao longe, na beira-mar, muito além do falso castelo mourisco, ia-se embora o sol, deixando a clareza das coisas (e talvez até mesmo a renovação da vida) para o dia seguinte. E isto era o que se via de um lado, porque do outro encaravam um rochedo esverdeado de árvores, uma ousada colina rochosa, e sobre ela um edifício avantajado, a própria construção imponente, e ainda mais do ponto de vista divertido da rapaziada.
Atravessar a larga avenida era a preocupante questão do momento, ainda que o movimento dos carros não fosse propriamente o de uma grande cidade brasileira neste horário... 
Hotel Nacional à noitinha
E do outro lado, sim, uma boa visão do Hotel Nacional, com o qual ainda lhes faltava intimidade, embora logo sentissem que por ali o peso da História tinha passado pegado... 
O Malecón, que pegaram na direção de La Habana Vieja, mítico centro colonial da cidade, era um calçadão entre a avenida e a mureta, e nem muito largo, com a óbvia função de ajudar as pedras carcomidas na defesa da cidade, pois também ali o mar de vez em quando se enfurece. Havana não tem praia e aquele trecho de litoral, assim, pedregoso, deve ter sido muito útil na histórica defesa da cidade, até porque ela foi fundada ali por causa do porto protegido e não pela presença das pedras. 

Pedras do Malecón
Pelo Malecón, foram se adentrando na noite, e de imediato perceberam que havia nesse caminho um desfilar de humanidade, ou, pelo menos, que tinham diante deles uma amostra fiel do povo cubano. Até então haviam convivido, do aeroporto ao hotel, com pessoas de uma condição social que, para um sociólogo de plantão, poderia ser definida, ao estilo brasileiro, como "classe média baixa", e havia alguns ali também, além, é claro, dos turistas, só que estes nem sempre são classificáveis...

O Malecón e a turista
Agora, era povo mesmo. Gente da mais evidente condição popular, no padrão dos que, no Brasil, são chamados de "pobres", e com, talvez, o mesmo índice de predominância de pessoas de pele escura, tendendo ao negro, e eram assim aqueles que circulavam, ou descansavam, ou namoravam, ou conversavam, ou vendiam comidinhas, ou compravam lembrancinhas, ou simplesmente olhavam o mar, ou o céu, ou as luzes da Havana que se enquadrava no amplo ponto de vista do Malecón.

O Malecón e o povão
Sempre atrevido nas suas conclusões, Rolé ainda fez um esforço, desta vez dispensável, de definição do local ou da situação:
- Isso aqui é uma espécie de pracinha de cidadezinha do interior, certo? Só que na cidade grande de Havana, à beira-mar e ao comprido...
E sempre devagar, como escolados observadores que eram, os curiosos brasileiros foram cruzando com figuras as mais variadas, em cores e estilos, todos eles atentos às suas formas contidas de lazer (que ali o espaço é público e todos são iguais perante os outros), mas sempre divertidos e relaxados, como tranquilos proprietários históricos do seu espaço, do qual se extraía um burburinho de conversas, e de cantos, e de risos, que iam seguindo, e também eles, pelo Malecón, acompanhando as pedras do litoral. 

Casal com bicicleta
De vez em quando, um destaque, um carinho... Entre eles, o casal namorando aos pés da bicicleta qual farol sobre o muro, um ou outro pescador improvisando uma linha, adolescentes exercendo a sua eterna arte do deboche, a mãe e o filho com as compras do dia que aguarda entre eles, os namorados discretos mas sensuais... Enfim, o povão, em toda a sua extensão.
No que se acostumam, ampliavam os interesses, e do outro lado da avenida estavam os prédios tradicionais de Havana, a serem observados também. Notava-se que a cidade estava em eterna reconstrução, explícita até demais... Muitos andaimes, alguns parecendo esquecidos, que encobriam fachadas, muitas placas informando reformas que talvez se arrastassem, e muitos prédios, como que arranhados ou derretidos, aguardando a sua vez. E algumas pérolas, com a devida ostentação luminosa, de novas fachadas ou até mesmo novos usos para antigos prédios, com especial destaque para restaurantes ponteando a orla.
Foi Leonil quem advogou o imediato conhecimento dos fatos, ou seja, que atravessassem a avenida e se aboletassem naquele restaurante ou no bar simpático que se via lá do outro lado, mas Egberto estava atento, ainda não era hora...

Restaurante na avenida Malecón
- Crianças, a gente combinou: nada de farras antes da apresentação!... E também acertamos de que, até lá, todo mundo ficaria junto, nada de cada um por si, e que ia ser tudo no coletivo. Depois de resolver a situação aqui, aí sim, a gente pode cair na gandaia, cada um que se cuide nessa hora!
- Pô, colé, meu?
- Nem "colé", nem rolé, Rolé!... Então, como combinamos, para hoje é o seguinte: daremos meia volta daqui mesmo do Malecón, que já deu para pegar o clima da cidade e o jeitão das pessoas, e nos recolheremos aos nossos conformes. Ou seja, vamos retornar, pianinho, ao hotel, assim tipo procissão de carolas em cidadezinha do interior, já que você lembrou. Ok? Tá valendo?
Amanda Onça, que apresentara seu monólogo na véspera e agitara o dia todo, estava tão cansada quanto eles. Tratou de se destacar, queria partir de imediato. Cheia de intimidade com a cidade, propôs que atravessassem a avenida e pegassem a rua São Lázaro. Dali, pegaria uma rua enviesada, a Trocadero, até o Paseo de Martí, e já estaria bem perto do apartamento, em Havana Velha, em que se hospedava. Sugeriu que o restante do grupo tomasse o sentido inverso da São Lázaro, caminhando até a Universidade, e daí até o hotel, pela rua L, mais alguns quarteirões, uns quinze ou vinte no total.
Só então os coroas perceberam que a volta seria longa e demorada. Tudo bem, havia tanta coisa a observar e era relativamente cedo... Bem que podiam pegar um táxi (ou melhor, dois), era só a chefia abrir um pouquinho a mão... Um mau humor aflorou, mas encontrou pela frente a firme voz de comando do Comandante Berto (desta vez, nada Triz Tonho), mapa na mão:
- Vamos lá, cambada, caminho de volta!... Pé na estrada e sem chiação!... Vocês sabem, né?... Andar é bom exercício!... E outra boa notícia: amanhã, é manhã liberada!... Cada um pode dormir o quanto quiser!

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Berto Triz Tonho  Tem hora que dá preguiça, mas a gente não podia perder a oportunidade de caminhar sossegadamente pelas ruas, sentir a pulsação da cidade. E foi tranquilo, a sensação de segurança nas ruas de Havana é palpável. Como deve ser bom viver em uma cidade, em um país, em que não há assaltos à mão armada nas ruas!...

Gastão Cavalcanti  Confesso que dei essa caminhada com um certo cagaço... Não havia muito movimento nas ruas e a gente não conhecia a cidade. Mas, foi tudo bem. Teve até uns garotos, que faziam uma batucada numa esquina (e a quem perguntamos pelo caminho), que, assim que perceberam que a gente era do Brasil, ensaiaram um sambinha...  

Russa Pimentel  Realmente, nesse aspecto (embora eu só possa falar pelo que vivi lá, não tenho dados), Cuba é um exemplo.  E mais: não chegaram a este ponto pela imposição da violência armada das forças policiais, coisa que nunca deu certo no Brasil, nem nunca dará porque a polícia (e ainda mais a militar) está a serviço das elites econômicas, além de ser historicamente inserida na ideologia racista mais radical. O Brasil continua cheio de capitães do mato. Quando as pessoas dizem "bandido bom é bandido morto" querem mesmo dizer "negro bom é negro morto"...

Amanda Onça  Bem, quando eu encontrei vocês já tinha uma experiência para contar.  O que eu posso dizer é que a questão racial lá não foi resolvida e há muito a ser feito, negros e brancos em Cuba não vivem sob as mesmas condições. Como mulher negra latino-americana, o que me impressionou é que sofri na própria pele o que sente uma mulher cubana e negra, e isso posso dizer pelo que me acontecia quando achavam que eu era cubana.

Rolé de Matos  Agora, se você compara a ilha com, por exemplo, outras nações do Caribe você vai que, por mais que não tenha resolvido a questão racial, Cuba avançou mais que qualquer outro país do continente na questão. Claro que seria esperar demais que pudessem mudar em 65 anos uma obra de mais de quatro séculos. Não é qualquer revolução que acaba com a "tradição" elitista colonial iberoamericana...

Leonil de Moura  Não que os negros de lá estejam tão bem assim, é certo, mas pelo menos têm sobrevivido... Enquanto isso, no Brasil, ficamos apenas boquiabertos, não sabemos o que fazer diante das estratosféricas taxas de mortes de jovens negros... É um linchamento oficial!

Elói de Holanda É que em Cuba eles têm as suas válvulas de escape, a começar pelos esportes, mais um exemplo para o mundo. A própria educação a que têm acesso ajuda nisso, nem que seja por lhes dar condições de participar das missões sociais ou humanitárias mundo a fora (vocês não viram quantos negros cubanos no programa Mais Médico?). E até mesmo pela religião, que está se expandindo por lá, graças a Deus.  

Eliete Barbosa  E a música, cara!... Fiquei encantada com a musicalidade daquele povo... Apesar das precariedades, eles podem fazer o mundo dançar! Ainda mais com essa aproximação dos americanos. Daqui a pouco eles estarão dominando os musicais de Hollywood, quem viver verá!

Rolé de Matos  Aí, já é demais... Está pretendendo tirar o mercado musical dos negros americanos, Eliete Barbosa?

Eliete Barbosa  Eles vão se entender... Vai ser um bom teste para os tempos pós-bloqueio...



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