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De repente, o elenco da
Zas-Brás cresceu e Egberto, de forma simples, explicou como e porquê. Conhecia
Tâmara há vários anos, dera palpites na direção do monólogo Nas Ventas da Onça,
com que ela fizera sucesso, entre os amigos e alguns mais, nos circuitos de
centros culturais do Rio de Janeiro e entorno, e em palcos alternativos. Havia
pouco, reencontraram-se, pelos meios virtuais, e ele soubera da participação dela
no FIAP, o
Festival Internacional de las Artes del Pueblo, em Cuba. Como estava
mesmo pensando em acrescentar nova personagem, exatamente com aquele tipo de perfil,
à próxima peça a ser montada pela Zás-Brás, cujo projeto apresentaria na reabertura
da temporada de editais artísticos da Funarte, iniciou conversa sobre as possibilidades
de Tâmara Mendonça, a sensual Amanda Onça, integrar-se à comunidade Zas-Brás. A
Onça mostrou-se interessada pela ideia de acompanhar o grupo em sua apresentação
no 7o. World Artistic Forum, o WAF7, em Medellín, Colômbia, prevista
como ponto alto da viagem. Este reforço trazia um pouco mais de equilíbrio ao
placar do jogo dos gêneros: a relação entre homens e mulheres mudava de 5x2
para 5x3... E a sua inclusão ainda afetava outras instâncias das relações
sociais internas: alterava a média etária (alguém na faixa dos 30, entre coroas
sessentões) e as questões étnico-sociais (uma mulher negra, de origem popular,
ocupando seu justo, e mínimo, lugar num grupo predominantemente branco e de
classe média).
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A vista do Hotel Victoria |
É bem verdade que no intervalo
da estreia do Brasil, Egberto, antes de sacramentar a proposta com a
apresentação triunfal de Amanda Onça, deu uma parada para pensar na questão.
Com o olhar perdido em direção aos casarões e prédios típicos de Vedado, todos dos
anos 1950, Egberto fez a última pesagem dos teatrais prós e contras. Concluiu
que havia apenas um grande perigo para a unidade e para a produtividade da
Zas-Brás, que era um mal que poderia assumir outros nomes e formas, que era talvez
a mais dramática (se não trágica) herança dos teatrais deuses gregos (e de outros):
o mal e velho Ciúme (assim, em caixa alta, respeitosamente). Um perigo e tanto...
No entanto, Egberto (neste caso, talvez apoiado no seu personagem Berto Triz
Tonho) era otimista: pensava conhecer bem as suas malícias e que saberia se cuidar
bem. Respirou fundo e, (quase) tranquilo, decidiu: "Deixa comigo!...".
No bar do hotel, as três
mulheres assumiam o comando das conversas, enquanto os homens ainda tentavam
fazer o rescaldo do futebol, até que o espaço ficou pequeno para todo aquele
entusiasmo (e alguma decepção com a seleção) e não havia mais condições de
continuarem enfurnados ali. Afinal de contas, o que estava lá fora era simplesmente
Havana, capital de Cuba, e louca para ser desbravada por todos!... Sem mais delongas,
amaram a sugestão de Onça, de começar este aprendizado pelo Malecón, uma das fundamentais
atrações de Havana, que estava ali, a poucos quarteirões, e ainda mais em um
fim de tarde, à disposição de todos.
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Por-de-sol em Vedado |
Completamente despreocupados (como
se fosse a seleção brasileira entrando em campo, talvez), desceram a Rua 19 em
direção ao mar, com Egberto insistindo em lembrar a todos, talvez esgarçando de
vez o seu duvidoso humor, que, para evitar problemas, deveriam evitar
ultrapassar o Malecón, porque, no rumo norte, a apenas 150km dali, estavam os americanos,
sempre de olho em tudo... Ora, quem vai para o norte tem o oeste à esquerda e
realmente, lá ao longe, na beira-mar, muito além do falso castelo mourisco,
ia-se embora o sol, deixando a clareza das coisas (e talvez até mesmo a
renovação da vida) para o dia seguinte. E isto era o que se via de um lado, porque
do outro encaravam um rochedo esverdeado de árvores, uma ousada colina rochosa,
e sobre ela um edifício avantajado, a própria construção imponente, e ainda
mais do ponto de vista divertido da rapaziada.
Atravessar a larga avenida era
a preocupante questão do momento, ainda que o movimento dos carros não fosse
propriamente o de uma grande cidade brasileira neste horário...
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Hotel Nacional à noitinha |
E do outro
lado, sim, uma boa visão do Hotel Nacional, com o qual ainda lhes faltava
intimidade, embora logo sentissem que por ali o peso da História tinha passado
pegado...
O Malecón, que pegaram na
direção de La Habana Vieja, mítico centro colonial da cidade, era um
calçadão entre a avenida e a mureta, e nem muito largo, com a óbvia função de
ajudar as pedras carcomidas na defesa da cidade, pois também ali o mar de vez
em quando se enfurece. Havana não tem praia e aquele trecho de litoral, assim,
pedregoso, deve ter sido muito útil na histórica defesa da cidade, até porque
ela foi fundada ali por causa do porto protegido e não pela presença das pedras.
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Pedras do Malecón |
Pelo Malecón, foram se adentrando
na noite, e de imediato perceberam que havia nesse caminho um desfilar de
humanidade, ou, pelo menos, que tinham diante deles uma amostra fiel do povo
cubano. Até então haviam convivido, do aeroporto ao hotel, com pessoas de uma
condição social que, para um sociólogo de plantão, poderia ser definida, ao
estilo brasileiro, como "classe média baixa", e havia alguns ali
também, além, é claro, dos turistas, só que estes nem sempre são classificáveis...
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O Malecón e a turista |
Agora, era povo mesmo. Gente da
mais evidente condição popular, no padrão dos que, no Brasil, são chamados de
"pobres", e com, talvez, o mesmo índice de predominância de pessoas
de pele escura, tendendo ao negro, e eram assim aqueles que circulavam, ou
descansavam, ou namoravam, ou conversavam, ou vendiam comidinhas, ou compravam
lembrancinhas, ou simplesmente olhavam o mar, ou o céu, ou as luzes da Havana
que se enquadrava no amplo ponto de vista do Malecón.
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O Malecón e o povão |
Sempre atrevido nas suas
conclusões, Rolé ainda fez um esforço, desta vez dispensável, de definição do
local ou da situação:
- Isso aqui é uma espécie de
pracinha de cidadezinha do interior, certo? Só que na cidade grande de Havana,
à beira-mar e ao comprido...
E sempre devagar, como
escolados observadores que eram, os curiosos brasileiros foram cruzando com
figuras as mais variadas, em cores e estilos, todos eles atentos às suas formas
contidas de lazer (que ali o espaço é público e todos são iguais perante os
outros), mas sempre divertidos e relaxados, como tranquilos proprietários históricos
do seu espaço, do qual se extraía um burburinho de conversas, e de cantos, e de
risos, que iam seguindo, e também eles, pelo Malecón, acompanhando as pedras do
litoral.
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Casal com bicicleta |
De vez em quando, um destaque,
um carinho... Entre eles, o casal namorando aos pés da bicicleta qual farol
sobre o muro, um ou outro pescador improvisando uma linha, adolescentes
exercendo a sua eterna arte do deboche, a mãe e o filho com as compras do dia que
aguarda entre eles, os namorados discretos mas sensuais... Enfim, o povão, em
toda a sua extensão.
No que se acostumam, ampliavam
os interesses, e do outro lado da avenida estavam os prédios tradicionais de
Havana, a serem observados também. Notava-se que a cidade estava em eterna
reconstrução, explícita até demais... Muitos andaimes, alguns parecendo
esquecidos, que encobriam fachadas, muitas placas informando reformas que
talvez se arrastassem, e muitos prédios, como que arranhados ou derretidos, aguardando
a sua vez. E algumas pérolas, com a devida ostentação luminosa, de novas
fachadas ou até mesmo novos usos para antigos prédios, com especial destaque
para restaurantes ponteando a orla.
Foi Leonil quem advogou o
imediato conhecimento dos fatos, ou seja, que atravessassem a avenida e se
aboletassem naquele restaurante ou no bar simpático que se via lá do outro
lado, mas Egberto estava atento, ainda não era hora...
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Restaurante na avenida Malecón |
- Crianças, a gente combinou: nada de farras antes da
apresentação!... E também acertamos de que, até lá, todo mundo ficaria junto, nada
de cada um por si, e que ia ser tudo no coletivo. Depois de resolver a situação
aqui, aí sim, a gente pode cair na gandaia, cada um que se cuide nessa hora!
-
Pô, colé, meu?
-
Nem "colé", nem rolé, Rolé!... Então, como combinamos, para hoje é o
seguinte: daremos meia volta daqui mesmo do Malecón, que já deu para pegar o
clima da cidade e o jeitão das pessoas, e nos recolheremos aos nossos conformes.
Ou seja, vamos retornar, pianinho, ao hotel, assim tipo procissão de carolas em
cidadezinha do interior, já que
você lembrou. Ok? Tá valendo?
Amanda
Onça, que apresentara seu monólogo na véspera e agitara o dia todo, estava tão cansada
quanto eles. Tratou de se destacar, queria partir de imediato. Cheia de
intimidade com a cidade, propôs que atravessassem a avenida e pegassem a rua
São Lázaro. Dali, pegaria uma rua enviesada, a Trocadero, até o Paseo de Martí,
e já estaria bem perto do apartamento, em Havana Velha, em que se hospedava. Sugeriu
que o restante do grupo tomasse o sentido inverso da São Lázaro, caminhando até
a Universidade, e daí até o hotel, pela rua L, mais alguns quarteirões, uns quinze
ou vinte no total.
Só
então os coroas perceberam que a volta seria longa e demorada. Tudo bem, havia
tanta coisa a observar e era relativamente cedo... Bem que podiam pegar um táxi
(ou melhor, dois), era só a chefia abrir um pouquinho a mão... Um mau humor
aflorou, mas encontrou pela frente a firme voz de comando do Comandante Berto
(desta vez, nada Triz Tonho), mapa na mão:
-
Vamos lá, cambada, caminho de volta!... Pé na estrada e sem chiação!... Vocês
sabem, né?... Andar é bom exercício!... E outra boa notícia: amanhã, é manhã
liberada!... Cada um pode dormir o quanto quiser!
--
PaCuCoBras [grupo
fechado] – Comentários:
Berto Triz Tonho Tem hora que dá preguiça, mas a
gente não podia perder a oportunidade de caminhar sossegadamente pelas ruas,
sentir a pulsação da cidade. E foi tranquilo, a sensação de segurança nas ruas
de Havana é palpável. Como deve ser bom viver em uma cidade, em um país, em que
não há assaltos à mão armada nas ruas!...
Gastão Cavalcanti Confesso
que dei essa caminhada com um certo cagaço... Não havia muito movimento nas
ruas e a gente não conhecia a cidade. Mas, foi tudo bem. Teve até uns garotos, que
faziam uma batucada numa esquina (e a quem perguntamos pelo caminho), que, assim
que perceberam que a gente era do Brasil, ensaiaram um sambinha...
Russa Pimentel Realmente, nesse aspecto (embora eu só
possa falar pelo que vivi lá, não tenho dados), Cuba é um exemplo. E mais: não chegaram a este ponto pela imposição
da violência armada das forças policiais, coisa que nunca deu certo no Brasil, nem
nunca dará porque a polícia (e ainda mais a militar) está a serviço das elites
econômicas, além de ser historicamente inserida na ideologia racista mais
radical. O Brasil continua cheio de capitães do mato. Quando as pessoas dizem
"bandido bom é bandido morto" querem mesmo dizer "negro bom é
negro morto"...
Amanda
Onça Bem, quando eu encontrei vocês já tinha uma
experiência para contar. O que eu
posso dizer é que a questão racial lá não foi resolvida e há muito a ser feito,
negros e brancos em Cuba não vivem sob as mesmas condições. Como mulher negra
latino-americana, o que me impressionou é que sofri na própria pele o que sente
uma mulher cubana e negra, e isso posso dizer pelo que me acontecia quando
achavam que eu era cubana.
Rolé de Matos Agora, se você compara a ilha com,
por exemplo, outras nações do Caribe você vai que, por mais que não tenha
resolvido a questão racial, Cuba avançou mais que qualquer outro país do
continente na questão. Claro que seria esperar demais que pudessem mudar em 65
anos uma obra de mais de quatro séculos. Não é qualquer revolução que acaba com
a "tradição" elitista colonial iberoamericana...
Leonil de Moura Não
que os negros de lá estejam tão bem assim, é certo, mas pelo menos têm sobrevivido...
Enquanto isso, no Brasil, ficamos apenas boquiabertos, não sabemos o que fazer diante
das estratosféricas taxas de mortes de jovens negros... É um linchamento
oficial!
Elói de Holanda É que em Cuba eles têm as suas
válvulas de escape, a começar pelos esportes, mais um exemplo para o mundo. A própria
educação a que têm acesso ajuda nisso, nem que seja por lhes dar condições de
participar das missões sociais ou humanitárias mundo a fora (vocês não viram
quantos negros cubanos no programa Mais Médico?). E até mesmo pela religião,
que está se expandindo por lá, graças a Deus.
Eliete Barbosa E a música, cara!...
Fiquei encantada com a musicalidade daquele povo... Apesar das precariedades, eles
podem fazer o mundo dançar! Ainda mais com essa aproximação dos americanos. Daqui
a pouco eles estarão dominando os musicais de Hollywood, quem viver verá!
Rolé de Matos Aí,
já é demais... Está pretendendo tirar o mercado musical dos negros americanos, Eliete Barbosa?
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