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Fazia o habitual calor tropical, na razoável intensidade primaveril. A tradicional “suave brisa” de outras descrições não só balançava os coqueiros dos jardins do aeroporto, de vários tipos, como desfilava em plena tarde pelos canteiros da avenida rumo ao centro de Havana. Pintado de amarelo brilhante, o volumoso táxi, uma minivan de fabricação chinesa, estava chancelado, como é costume, pela típica faixa quadriculada esticada na lateral do carro. Instigado por Leonil, o motorista pisava fundo.
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Com pressa, no trânsito |
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Ei, esse é um táxi ou um carro de Fórmula-1?... – perguntou Raíssa. Lembrou-se
das corridas e desenvolveu a dúvida: a bandeira da Fórmula-1 migrara para a faixa
dos táxis ou, muito pelo contrário, foram às pistas?... "Quem, afinal,
exagerou primeiro na velocidade?..."
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Ginásio na pista |
Ao lado do motorista, Leonil não ouvia
reclamações nem olhava para os lados. Nos outros bancos o mesmo cacarejar de
quando a trupe se juntava, com um ou outro de vez em quando cantando de galo...
Para Leo, Havana era como qualquer outra cidade do mundo, apesar de (sem contar
o Brasil e o aeroporto de Panama City) Cuba ser o primeiro país que conhecia.
Passavam carros de todas as idades, ele nem reparava. O táxi se esforçava para
evoluir dentro ou fora da pista segregada, e não deixavam. Sinais apareciam a
toda hora, rotatórias enrolavam o caminho, os prédios ficavam para trás. Passa
um ginásio com aparência e (quase)
tamanho do Maracanãzinho, e ele só pensava em futebol...
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Camilo na Praça da Revolução |
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Cine Yara |
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Painel de revolucionários |
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Hotel Victoria |
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Onde assisto ao jogo da seleção brasileira?... Futebol, Copa do Mundo, televisão,
entende?...
Enfim,
ela indicou a televisão do salão do bar, podiam tomar uma cerveja enquanto viam
o jogo. Encontrou três velhotes que comentavam animadamente os lances de uma
partida da Super Série cubana de beisebol, a “pelota”, esporte mais popular que
o futebol na Ilha, um jogo entre Centrales e Occidentales ou Orientales, não
teve tempo de confirmar, e nem era ao vivo. Isto era hora de verem repeteco
daquele esporte chato, justo no início da Copa do Mundo de futebol, e no Brasil?...
No que engoliu em seco, Leonil regurgitou um dilema primário: tomar uma atitude
ousada e impor a sua justificadíssima vontade, uma necessidade, ou, como lhe
ensinaram na infância, respeitar os mais velhos?... Incorporar esse respeito
incondicional aos idosos custara-lhe muito esforço, medido em chineladas e puxões
de orelha... É, não dava: não seria agora, em terra estrangeira, que voltaria a
ser um menino mal educado.
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A atendente |
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Ah, faz favor, né?... Esse jogo é tão importante assim?...Vai mudar o quê na
vida dele?... Para o povo, daqui ou de lá, serve para quê?... – Rolé não dava a
mínima para futebol. Percebia o calendário das partidas por mudança do
comportamento alheio, reuniões encerradas com pressa, ausências de alguns em certos
horários... Seu esporte preferido era a observação da vida alheia, não
necessariamente como praticante da mais absoluta fofoca, mas, como sempre dizia,
na intenção de aprender novas formas de expressão, desenvolver sua arte da
imitação. Como um veterano jogador de futebol, usava toda a sua cancha para ser
teatral...
Ao
fim de atrasos e dramas, assistiram ao jogo. Elói e Eliete cumpriram seu dever
patriótico. Gastão e Rolé, com algum deboche, exercitaram o senso crítico. Raíssa
dividia a mente em duas: uma, torcendo pela seleção, outra, torcendo a cara
para os gastos e desperdícios das obras dos estádios, entre outras
malversações, na medida em que lembrava. Nas contas de Egberto, era um alívio
assistir, em especial, àquele jogo: eliminava uma crise...
Lamentaram
a perda da festa de abertura, um show (des)enrolado sobre o gramado coberto de
tapumes do Itaquerão, São Paulo. Talvez fizesse falta a quem mexia com teatro,
“ainda mais se tratando de uma produção brasileira, povo de artistas com vários
shows por ano, dos carnavais aos réveillons, dos bumbas-meu-boi aos festivais
amazônicos”, Egberto pensava, com orgulho, já preparando uma possível fala
sobre o Brasil no festival cubano. Para ele, era garantido que o espetáculo de
abertura da Copa seria caprichoso... As imagens editadas pela TV americana e
jogadas rapidamente no ar durante o intervalo é que pareciam bem ruinzinhas. Não
vira nada de bom nelas: roupas ridículas, movimentos insossos, um trio muito
suburbano de cantores internacionais...
O
segundo tempo do jogo seguia mal resolvido, ainda que o Brasil estivesse
ganhando, até que um pênalti meio malandro praticamente decidiu o jogo.
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O quarto colorido |
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Esse Fred é o maior teatro!... – Gastão, indignado com a dependência quase
química daqueles “panacas” ao mísero futebol que a TV (toda colorida)
escancarava naquele (também colorido) quarto de hotel, avaliou o jogo de cena:
a falsificação do pênalti pelo centroavante canarinho (que resultou em gol de
Neymar) fora das melhores performances artísticas a que assistira!...
-
Esse time aí, o da toalha de piquenique, devia processá-lo no Tribunal de
Nuremberg da FIFA!... – resumiu, talvez misturando competições.
O
resto da turma dividia-se no bate-boca (atrapalhando a atenção de Leonil aos
detalhes, ainda mais que os comentaristas da TV falavam espanhol): uns achavam
que Fred cavara o pênalti, o que não deixava de ser um recurso válido e justo;
outros, que Fred inventara o pênalti e devia ser expulso pela simulação, se não
fosse brasileiro, é claro...
Findo
o jogo, descanso geral: sonecas e banhos... Por convocação de Egberto, voltaram
a se encontrar no bar do hotel, no início da noite. Sentados nas cadeiras
vermelhas, experimentando cervejas cubanas entre os tonéis de vinho da pintura
da sala, a atenção do bando agora era outra:
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Berto, cadê a surpresa?... Desistiu?...
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A tâmara da onça |
E
não é que neste momento adentra ao salão uma mulher esguia, pele negra e
cabelos revoltos, figura ainda mais alongada pelo rastejante vestido vermelho, trazendo
um sorriso que transcendia o espaço, quiçá o tempo?... Egberto dedicou-lhe um profundo
salamaleque e beijou-lhe a mão. Virando-se para a estonteada plateia, apresentou
(e declarou):
-
Meus amigos, esta é Tâmara Mendonça, a teatral Amanda Onça!... Com vocês, a nova
"membra" da Zás-Brás Elucubrações Artísticas!
--
PaCuCoBras [grupo fechado] –
Comentários:
Gastão Cavalcanti Realmente, o Fred merecia um Oscar (já o Oscar fez uns golzinhos, mas não leva o menor jeito pro teatro...). O fato é
que brasileiro, em geral, é mesmo dramático. Isso, se não for apenas bom ator (modéstia
à parte, nessa eu me incluo...). Esse jogo foi uma aula de artes cênicas...
Lembram a emoção do time cantando o hino nacional? E aquele comediante, o
Neymar? Beijou a bola na hora de bater o pênalti e depois fez coraçãozinho com
as mãos para a torcida, uma graça... Acho que este foi o jogo de futebol que
mais apreciei na vida: eu podia ter sido escalado!... Daria um show!
Elói de Holanda Vcs estão criticando o Fred, mas, graças a Deus, tínhamos grandes artistas naquele time. Só a ajuda divina explica como conseguimos ir tão longe na Copa...
Russa Pimentel Puxa, lembrou até dos operários
no caminhão... Gostei da lembrança do interior do quarto, rosa com móveis
amarelos, e da nossa torcida, juntos. A solidariedade é colorida. A confiança é
toda colorida. E gostei de lembrar da chegada estonteante (também colorida) de Amanda Onça, grande presença!
Rolé de Matos Quanto a tudo isso, tudo bem,
mas não consigo esquecer que o futebol da seleção foi meio chinfrim desde o
começo...
Leonil de Moura Olha só, pessoal, na boa, vou avisando
logo: não estou nem um pouco a fim de me lembrar da Copa, ok?
Berto Triz Tonho O
melhor mesmo é que a Copa não anestesiou nada: as manifestações continuaram
ocorrendo de forma convicta! Por outro lado, a ação policial, sem surpresa
alguma, também ocorreu de forma desmedida e despreparada. E o brasileiro se habituando a reclamar e apanhar...
Amanda Onça Olá,
pessoal. Grato pela inclusão neste grupo secreto de comentários, ainda que só tenham
feito isto agora, quando apareço na história... É chato ver discriminação,
ainda mais entre nós, artistas, e espero que não seja mais um caso de racismo,
que sou (ou fui) a única negra (e, ainda por cima, mulher) do grupo... Tudo
bem, estou aqui e vou ficar. Temos mesmo que manter posição, que ampliar
presença, isso é que importa.
Aliás,
já que estão falando do jogo de abertura da Copa, vou te dizer: foi chocante!...
Cara, era como se não houvesse negros em São Paulo!...
Não vi um preto nas arquibancadas, deviam estar
nos "serviços", e só uns dois ou três no time brasileiro, apenas
porque os brancos não se garantem na bola!...
Durante a transmissão do jogo, visto por bilhões de pessoas em todo o planeta,
eu estava na casa de uma amiga cubana e o primeiro comentário dela, ao ver a
imagem das arquibancadas do Itaqueirão, foi: "ué, não há negros no
Brasil?"...
Racismo
é igual em qualquer lugar, mas no Brasil, do jeito que os negros são escondidos
pelos brancos (quando não eliminados...), nem sempre é possível enxergar...
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