5/06/2015

08 - Jogo de cena em Havana

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Fazia o habitual calor tropical, na razoável intensidade primaveril. A tradicional “suave brisa” de outras descrições não só balançava os coqueiros dos jardins do aeroporto, de vários tipos, como desfilava em plena tarde pelos canteiros da avenida rumo ao centro de Havana. Pintado de amarelo brilhante, o volumoso táxi, uma minivan de fabricação chinesa, estava chancelado, como é costume, pela típica faixa quadriculada esticada na lateral do carro. Instigado por Leonil, o motorista pisava fundo.
Com pressa, no trânsito
- Ei, esse é um táxi ou um carro de Fórmula-1?... – perguntou Raíssa. Lembrou-se das corridas e desenvolveu a dúvida: a bandeira da Fórmula-1 migrara para a faixa dos táxis ou, muito pelo contrário, foram às pistas?... "Quem, afinal, exagerou primeiro na velocidade?..."
Ginásio na pista
Ao lado do motorista, Leonil não ouvia reclamações nem olhava para os lados. Nos outros bancos o mesmo cacarejar de quando a trupe se juntava, com um ou outro de vez em quando cantando de galo... Para Leo, Havana era como qualquer outra cidade do mundo, apesar de (sem contar o Brasil e o aeroporto de Panama City) Cuba ser o primeiro país que conhecia. Passavam carros de todas as idades, ele nem reparava. O táxi se esforçava para evoluir dentro ou fora da pista segregada, e não deixavam. Sinais apareciam a toda hora, rotatórias enrolavam o caminho, os prédios ficavam para trás. Passa um ginásio com aparência e (quase) tamanho do Maracanãzinho, e ele só pensava em futebol... 

Camilo na Praça da Revolução
A Praça da Revolução, com grandes retratos de Che Guevara e Camilo Cienfuegos, montagens metálicas nas fachadas de prédios, e nada de política agora... O Cine Yara, com a avantajada fachada para a praça da sorveteria Copélia, parecendo mais uma igreja pentecostal brasileira, só que não ia entrar na fria de uma fila nessa hora... Os operários se divertindo na carroceria do caminhão, enquanto passavam por painéis revolucionários (“Todo por la Revolución”, “Viva Cuba Libre” etc), e ele focado em outro jogo... 
Cine Yara
Argumentando tratar-se de brasileiros, gente da área cultural, de baixo poder aquisitivo, fazendo grande esforço para viabilizar a viagem com mínimo apoio oficial, e adicionando certo charme literário nas trocas de e-mails com Verônica, a relações públicas da agência de turismo ligada ao evento, Egberto, enfim, conseguiu algum desconto e acomodações muito próprias, que acharia mesmo confortáveis, para a sua turma no Hotel Victoria, uma construção pré-revolucionária com administração pós, ou seja, pertencente a uma rede caribenha sediada em Curaçao. Um dos quartos, o para três pessoas, seguia o padrão divulgado no site do hotel, combinando cama dupla e de solteiro. Mas, graças a seus e-mails persuasivos, o outro quarto que agendara ganharia acréscimo de mais uma cama de solteiro, caberiam quatro pessoas. 
Painel de revolucionários
No total, os sete em dois quartos, e pronto: a Zas-Brás conseguira seu ninho em Havana. Bem localizado em Vedado, área nobre, bairro movimentado da cidade, ainda que um pouco distante de Havana Vieja, onde rolariam as palestras e as apresentações do FIAP, o Festival Internacional de las Artes del Pueblo.
Hotel Victoria
Leonil nem reparou na sóbria fachada nem no vestíbulo vagamente britânico do hotel. Foi direto ao balcão e puxou conversa com a atendente, mais confusa pela ansiedade do que pela falta de intimidade com a língua:
- Onde assisto ao jogo da seleção brasileira?... Futebol, Copa do Mundo, televisão, entende?...
Enfim, ela indicou a televisão do salão do bar, podiam tomar uma cerveja enquanto viam o jogo. Encontrou três velhotes que comentavam animadamente os lances de uma partida da Super Série cubana de beisebol, a “pelota”, esporte mais popular que o futebol na Ilha, um jogo entre Centrales e Occidentales ou Orientales, não teve tempo de confirmar, e nem era ao vivo. Isto era hora de verem repeteco daquele esporte chato, justo no início da Copa do Mundo de futebol, e no Brasil?... No que engoliu em seco, Leonil regurgitou um dilema primário: tomar uma atitude ousada e impor a sua justificadíssima vontade, uma necessidade, ou, como lhe ensinaram na infância, respeitar os mais velhos?... Incorporar esse respeito incondicional aos idosos custara-lhe muito esforço, medido em chineladas e puxões de orelha... É, não dava: não seria agora, em terra estrangeira, que voltaria a ser um menino mal educado.
A atendente 
Retornou à recepção e, enquanto os outros mostravam passaportes, preenchiam fichas ou cuidavam da bagagem, reabriu negociações com a atendente. Desta vez, graças ao apoio do castelhano mais inteligível de Gastão, funcionou. Para ver o jogo, disse-lhe a tranquila funcionária, a solução era simples: assistir na TV do próprio quarto!... Leonel, atropelando geral (até porque, divertidos, deixaram que furasse a fila), identificou-se à frente de todos e, levando a chave como um troféu, correu para o quarto, jogou-se na cama e começou a apertar freneticamente os botões do controle remoto. Atravessou canais de noticiário internacional e local, infantis abobalhados e shows sem graça (notou muita diferença em relação à brasileira, não imaginava tantas opções na TV a cabo local), até, finalmente, encontrar a Copa do Mundo. Vendo o futebol brasileiro, ainda que em Cuba, estava em casa!
- Ah, faz favor, né?... Esse jogo é tão importante assim?...Vai mudar o quê na vida dele?... Para o povo, daqui ou de lá, serve para quê?... – Rolé não dava a mínima para futebol. Percebia o calendário das partidas por mudança do comportamento alheio, reuniões encerradas com pressa, ausências de alguns em certos horários... Seu esporte preferido era a observação da vida alheia, não necessariamente como praticante da mais absoluta fofoca, mas, como sempre dizia, na intenção de aprender novas formas de expressão, desenvolver sua arte da imitação. Como um veterano jogador de futebol, usava toda a sua cancha para ser teatral...
Ao fim de atrasos e dramas, assistiram ao jogo. Elói e Eliete cumpriram seu dever patriótico. Gastão e Rolé, com algum deboche, exercitaram o senso crítico. Raíssa dividia a mente em duas: uma, torcendo pela seleção, outra, torcendo a cara para os gastos e desperdícios das obras dos estádios, entre outras malversações, na medida em que lembrava. Nas contas de Egberto, era um alívio assistir, em especial, àquele jogo: eliminava uma crise...
Lamentaram a perda da festa de abertura, um show (des)enrolado sobre o gramado coberto de tapumes do Itaquerão, São Paulo. Talvez fizesse falta a quem mexia com teatro, “ainda mais se tratando de uma produção brasileira, povo de artistas com vários shows por ano, dos carnavais aos réveillons, dos bumbas-meu-boi aos festivais amazônicos”, Egberto pensava, com orgulho, já preparando uma possível fala sobre o Brasil no festival cubano. Para ele, era garantido que o espetáculo de abertura da Copa seria caprichoso... As imagens editadas pela TV americana e jogadas rapidamente no ar durante o intervalo é que pareciam bem ruinzinhas. Não vira nada de bom nelas: roupas ridículas, movimentos insossos, um trio muito suburbano de cantores internacionais...
O segundo tempo do jogo seguia mal resolvido, ainda que o Brasil estivesse ganhando, até que um pênalti meio malandro praticamente decidiu o jogo.
O quarto colorido
- Esse Fred é o maior teatro!... – Gastão, indignado com a dependência quase química daqueles “panacas” ao mísero futebol que a TV (toda colorida) escancarava naquele (também colorido) quarto de hotel, avaliou o jogo de cena: a falsificação do pênalti pelo centroavante canarinho (que resultou em gol de Neymar) fora das melhores performances artísticas a que assistira!...
- Esse time aí, o da toalha de piquenique, devia processá-lo no Tribunal de Nuremberg da FIFA!... – resumiu, talvez misturando competições.
O resto da turma dividia-se no bate-boca (atrapalhando a atenção de Leonil aos detalhes, ainda mais que os comentaristas da TV falavam espanhol): uns achavam que Fred cavara o pênalti, o que não deixava de ser um recurso válido e justo; outros, que Fred inventara o pênalti e devia ser expulso pela simulação, se não fosse brasileiro, é claro...
Findo o jogo, descanso geral: sonecas e banhos... Por convocação de Egberto, voltaram a se encontrar no bar do hotel, no início da noite. Sentados nas cadeiras vermelhas, experimentando cervejas cubanas entre os tonéis de vinho da pintura da sala, a atenção do bando agora era outra:
- Berto, cadê a surpresa?... Desistiu?...
A tâmara da onça
E não é que neste momento adentra ao salão uma mulher esguia, pele negra e cabelos revoltos, figura ainda mais alongada pelo rastejante vestido vermelho, trazendo um sorriso que transcendia o espaço, quiçá o tempo?... Egberto dedicou-lhe um profundo salamaleque e beijou-lhe a mão. Virando-se para a estonteada plateia, apresentou (e declarou):
- Meus amigos, esta é Tâmara Mendonça, a teatral Amanda Onça!... Com vocês, a nova "membra" da Zás-Brás Elucubrações Artísticas!
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PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:

Gastão Cavalcanti Realmente, o Fred merecia um Oscar (já o Oscar fez uns golzinhos, mas não leva o menor jeito pro teatro...). O fato é que brasileiro, em geral, é mesmo dramático. Isso, se não for apenas bom ator (modéstia à parte, nessa eu me incluo...). Esse jogo foi uma aula de artes cênicas... Lembram a emoção do time cantando o hino nacional? E aquele comediante, o Neymar? Beijou a bola na hora de bater o pênalti e depois fez coraçãozinho com as mãos para a torcida, uma graça... Acho que este foi o jogo de futebol que mais apreciei na vida: eu podia ter sido escalado!... Daria um show!

Eliete Barbosa  Ah, que nada, Gastão Cavalcanti, não seja chato! Ganhamos na bola!


Elói de Holanda Vcs estão criticando o Fred, mas, graças a Deus, tínhamos grandes artistas naquele time. Só a ajuda divina explica como conseguimos ir tão longe na Copa...

Russa Pimentel Puxa, lembrou até dos operários no caminhão... Gostei da lembrança do interior do quarto, rosa com móveis amarelos, e da nossa torcida, juntos. A solidariedade é colorida. A confiança é toda colorida. E gostei de lembrar da chegada estonteante (também colorida) de Amanda Onça, grande presença!

Rolé de Matos Quanto a tudo isso, tudo bem, mas não consigo esquecer que o futebol da seleção foi meio chinfrim desde o começo...  

Leonil de Moura Olha só, pessoal, na boa, vou avisando logo: não estou nem um pouco a fim de me lembrar da Copa, ok?

Berto Triz Tonho O melhor mesmo é que a Copa não anestesiou nada: as manifestações continuaram ocorrendo de forma convicta! Por outro lado, a ação policial, sem surpresa alguma, também ocorreu de forma desmedida e despreparada. E o brasileiro se habituando a reclamar e apanhar...

Amanda Onça Olá, pessoal. Grato pela inclusão neste grupo secreto de comentários, ainda que só tenham feito isto agora, quando apareço na história... É chato ver discriminação, ainda mais entre nós, artistas, e espero que não seja mais um caso de racismo, que sou (ou fui) a única negra (e, ainda por cima, mulher) do grupo... Tudo bem, estou aqui e vou ficar. Temos mesmo que manter posição, que ampliar presença, isso é que importa.
Aliás, já que estão falando do jogo de abertura da Copa, vou te dizer: foi chocante!... Cara, era como se não houvesse negros em São Paulo!... Não vi um preto nas arquibancadas, deviam estar nos "serviços", e só uns dois ou três no time brasileiro, apenas porque os brancos não se garantem na bola!... Durante a transmissão do jogo, visto por bilhões de pessoas em todo o planeta, eu estava na casa de uma amiga cubana e o primeiro comentário dela, ao ver a imagem das arquibancadas do Itaqueirão, foi: "ué, não há negros no Brasil?"...
Racismo é igual em qualquer lugar, mas no Brasil, do jeito que os negros são escondidos pelos brancos (quando não eliminados...), nem sempre é possível enxergar...

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