5/21/2015

10 - Descanso prévio

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         O Brasil estreou com vitória na Copa de 2014, 2 x 1 sobre a Croácia. Na mesma noite, em Cuba, Raíssa & Egberto, na estreia de um torneio para o qual se preparavam há mais de 40 anos, ficaram empatados: 0 x 0.
         Pela primeira vez dormiram juntos uma noite inteira, na mesma cama, e, mais um detalhe favorável, em campo neutro. Apesar disso, o jogo foi travado, sem perigo de gol, nem sequer houve lances na pequena área. Assim, o jogo tão esperado nada acrescentou à, digamos, novela (que, considerando o resultado da partida, ainda não era romance). Pela manhã, ao final da peleja, como diriam os comentaristas, o placar espelhava a atuação das equipes.
         Talvez a torcida (restrita aos próprios jogadores, jogo de portões fechados...) não tivesse mesmo maiores expectativas. Mas, jogo é jogo, diz o regulamento, e, ao menos deve-se dar crédito ao casal: jogaram o jogo... Certo, a classificação era provisória (um ponto para cada um) e não se tratava de um torneio "mata-mata" (como a parte final da Copa), mas de um campeonato de pontos corridos (que nem o Brasileirão): as equipes ainda entrariam em campo outras vezes, teriam muitos jogos pela frente!
Uniforme de Egberto
         Antes do desenrolar da partida, nas preliminares, ainda houve alguma emoção. A necessidade de divisão do vestiário (o banheiro, o único, assim como a cancha, digo, a cama) provocou o momento de maior tensão. Far-play, no entanto, não faltou... Com uma moeda de real, Egberto sorteou. Ele próprio ganhou, resultando em razoável equilíbrio nas ações. Com algum entusiasmo, talvez ansiedade, juntou a camisa e o calção, escolhidos conforme o mando de campo, e se dirigiu ao banheiro, sem nem sequer completar o aquecimento (mais mental do que físico) que iniciara: fazia questão de uma boa atuação. O fato de se preparar primeiro, deu tempo a Raíssa de, pacientemente, separar as peças de roupa que usaria na contenda. Peças que tirou da mala e redobrou sobre a cama, já na ordem em que vestiria (o que não era complicado demais, o uniforme completo não passava de calcinha e camisola).
Uniforme de Raíssa



         Em poucos minutos, Egberto estava de volta, dando pulinhos sobre o carpete do quarto, mais um exercício, por conta da estimulante água fria, a que estava acostumado. Raíssa apreciou (e elogiou) sua disposição e quase iniciaram uma comemoração antecipada. Ela conteve-se, ainda não estava em condições de jogo... Contendo-se, Raíssa desvencilhou-se e colocou entre eles o volumoso nécessaire em que transportava apetrechos e substâncias que lhe garantiam domínio praticamente completo sobre a própria aparência, uma questão fundamental, em viagem ou não. Agitando-a enquanto passava à frente dele, recolheu-se ao banheiro, onde talvez tenha, realmente, se estendido um pouco além do necessário (pela sensação dele), mas não além do suficiente (pela dela).
         Se Raíssa demorou um tanto demais no vestiário, digo, no banheiro, certamente foi porque não se pode adentrar ao gramado, digo, aos lençóis sem uma boa adaptação do corpo. Processo que começava, para ela, pela desmontagem de todo o aparato de maquiagem que construíra na maratona desse dia, desde a apressada saída na madrugada de Bogotá, nas rápidas paradas nos toaletes dos aeroportos e aviões do percurso, e que completou, com uma rápida ajeitada de sobrancelhas, neste mesmo quarto de hotel, pouco antes de descer para assistir ao jogo da seleção brasileira e sair para o Malecón. Todas estas camadas, pacientemente acumuladas, agora precisavam ser retiradas com a devida técnica, o que toma tempo. Feito o desmanche, cabia uma preparação condizente com a situação, o que incluía não só um relaxante banho morno como imprescindíveis massagens emolientes (não só faciais, mas também, entre braços e pernas, em outras áreas sensíveis do corpo).
         Enfim, incontáveis (no sentido de indefinição, não de excesso) minutos depois (e nem era o caso de prorrogação, de acrescentar tempo ao final do jogo), eis que Raíssa se reapresentou elegantemente uniformizada diante da, em tese, plateia, com a camisola de seda em nuances de preto e vermelho e a calcinha rosa regulamentares, toda limpinha e cheirosa, exatamente como costuma entrar em campo qualquer jogador que se preze, por menor que seja o estádio ou a arena (no caso, o quarto) da disputa.
         Para sua surpresa, o adversário (e agora, havia de classificá-lo assim...) não apresentava condições de jogo. Estivesse ou não contundido (por mais que vivesse batendo cabeça...) ou se tratasse de inesperado caso de dopping (que há atletas que não têm uma boa cabeça...), o fato é que Egberto, durante esta espera interminável, perdera por completo os sentidos (ou, pelo menos, o senso de oportunidade): dormia desvairadamente. Raíssa estava preparada para alguma impaciência da parte dele, mas não exatamente deste tipo... Percebia, agora, que os ruídos que ouvira no banheiro não vinham de vuvuzelas ou apitos da torcida, mas do, digamos, ressonar exagerado de Egberto, que não teria a deselegância de chamar de ronco, mesmo. É, é do jogo, às vezes dá muita dor de cabeça mesmo, e ela também estava cansadíssima. Conformada a interrupção, fez uma substituição no estado de espírito e acomodou-se a lado dele, evitando cuidadosamente o contato (uma cama não tão larga assim) e tratou de dormir.
         Foi ela quem acordou mais cedo. Rapidamente (para os seus padrões), colocou um biquíni e desceu para a simpática e pequena piscina do hotel, ainda vazia. No que a porta bateu, Egberto acordou. Tomou um banho, se arrumou e partiu para o café da manhã, de onde saiu para encontrar o pessoal da organização do evento, baseados no Hotel Nacional, a poucas quadras. Devido ao atraso da inscrição, amarrado pela burocracia brasileira (e também por algumas indecisões pessoais), ainda precisava confirmar a participação da Zas-Brás na FIAP, agora em caráter especial, fora da programação divulgada. "Importante é que estamos na WAF7, em Medellín. Participar aqui do FIAP é um extra!", sempre argumentara. Devia esta certeza aos parceiros de viagem, eles não sabiam do risco de não participarem...
         Por volta de 13h, todos no almoço, no próprio hotel, inclusive Tâmara Mendonça, que se integrava ao grupo. Era também reunião de trabalho e o último a chegar foi justamente Egberto. Trazia um sorriso meio cambaleante no rosto, mas isto não preocupou ninguém, todos conheciam seu personagem Berto Triz Tonho, que, imediatamente, trocou por um olhar brilhante. Com a cara mais feliz de Cuba, anunciou:
         - Nossa apresentação será segunda-feira. Sabem onde?... Em Varadero!
         Antes que perguntassem "mas, não era em Havana Vieja?...", contou uma tortuosa história sobre programações entupidas e prioridades discutíveis, "sabe como é, não dá para confiar muito nesses planejamentos centralizados, né?". 
Habana Libre ao longe
Foi difícil, garantiu, mas conseguiu inserir a apresentação da Zas-Brás na terça-feira à noitinha, em Varadero, uma extensão do FIAP. A vantagem é que ganhavam tempo para enturmar Amanda Onça e até acrescentar cacos inspirados na vida cubana. Explodiram os anseios:
         - Precisamos ensaiar!
         - Precisamos ir às ruas!
         - Ei, quero acessar internet!

         Ganhou a carência afetiva... Amanda Onça assumiu o comando, já conhecia os macetes (e as dificuldades) de acesso à internet em Cuba. Podiam tentar no próprio Hotel Victoria, mas a proposta de ir a um dos dois grandes hotéis da redondeza, onde havia cabines públicas, a versão turístico-cubana das populares lan-houses de outros países, inclusive o Brasil, era muito mais divertida. 




Hotel Habana Libre, interiores
         Uma espécie de bloco de sujo, pela informalidade, saiu às ruas de Vedado, subindo para o Habana Libre, o antigo Habana Hilton, o maior arranha-céu da América Latina ao ser inaugurado, em 1958, poucos meses antes da vitória da Revolução, pelo grupo hoteleiro americano, que deu azar, mas recebeu sua indenização...

         Tomando cuidado para não confundirem animação com invasão, o grupo espalhou-se por lojas e poltronas do térreo do hotel. Onça e Rolé subiram as escadarias para consultar os preços e alguns foram atrás, observando as plantas, o piso espelhado, as obras de arte e os registros históricos nas paredes, fotografias de Fidel Castro no quartel-general instalado no hotel em 1959 ou Che Guevara, em 1966, enfrentando campeões mundiais de xadrez no torneio em homenagem a Capablanca, lenda do xadrez cubano, campeão mundial nos anos 1920, e até inventor de uma nova versão do jogo.



Hotel Nacional, esplanada
         Muita gente na fila e, como já esperavam, acesso caro: acharam melhor tentar uma segunda opinião... Na época, a internet, em Cuba, além de mal distribuída, custava mais que o dobro do preço brasileiro, apesar das armações das provedoras. O serviço cubano, mesmo para turistas, a prioridade máxima do país no momento, era difícil e ruim. Por ironia, de fora, quem procurasse informações sobre o país encontrava muitos blogs, boa parte deles publicados no país por dissidentes ou críticos, mas também por defensores do regime, fora os baseados na Flórida.  
Hotel Nacional, noivos no Ford 1955
         O Hotel Nacional estava a poucas quadras. E lá foram todos, na direção do Malecón, descendo a popular avenida 23, La Rampa, famosa nos 1940 e 1950 pela concentração de cassinos e outras formas de lazer... 
         Na rua O, subiram à esquerda, para chegar à esplanada de entrada do Hotel Nacional. Inaugurado em 1930, o hotel mantém a linha, até porque é uma espécie de monumento nacional, sempre cercado pelos famosos carros americanos, conservados, desde os anos 1950, pela paciência e pela necessidade cubana, transformados em folclóricos táxis. 

Hotel Nacional, interiores
         Cada um cuidou do seu... Elói e Leo partiram para o estacionamento, namorando os carros. Eliete e Raíssa ficaram na porta do hotel, curtindo os noivos fotografados sobre um Ford Fairlane 1955 branco, conversível. Gastão e Egberto, extasiados, estacaram no átrio principal e ficaram comentando as arcadas, os lustres, os azulejos, as madeiras do forro. Insistentes (e eficientes), Rolé e Amanda, em rápida investigação, descobriram onde os computadores de acesso à internet funcionavam.

         Precisaram subir uma escadinha na ponta esquerda do vestíbulo e procurar a sala exata na sobreloja. Até encontrar a internet era difícil, e não por acaso, havia muita história nisso...

Hotel Naciona, 1930, e jardins
         A expansão da internet aconteceu justamente quando Cuba passava pelo "período especial", o grande sufoco, quando sumiram tanto o açúcar, que vendiam, quanto a União Soviética, que o comprava. Ainda por cima, ficou fora, devido ao bloqueio econômico americano, da rota dos cabos submarinos internacionais. 
Hotel Nacional, varandas
Conseguiu uma conexão por cabo com a Venezuela, recentemente, o que melhoraria a situação, mas o acesso não foi generalizado, em parte pela carência das pessoas, também pelas preocupações com segurança, que o país é gato escaldado, ainda mais vendo a inspiração americana nas "primaveras" de revoltas de alguns países e, logo, descobrindo a tentativa de implantação de redes de mensagens telefônicas internacionais subsidiadas pelos vizinhos do norte... 

Hotel Nacional, cocotáxi e táxi
          Aos poucos, dividindo o preço da hora, todos a abriram seus e-mails e perceberam que o tanto o Brasil quanto o mundo continuavam no mesmo lugar, do outro lado do mar da Ilha. Restou-lhes um fim de tarde leve nas varandas espaçosas do Hotel Nacional e Gastão até se emocionou, abraçado a uma coluna, lembrando-se do Copacabana Palace de sua juventude. Tornou-se necessária uma atitude e foi Amanda Onça, nova liderança, quem propôs:
         - Que tal ouvir música em algum bar de Habana Vieja?
         "Sim!... E dançar!", completaram. Quase pegaram o coco-táxi, mas uma invenção cubana, surpreendido à porta do hotel. Ora, o Victoria estava bem perto: saiu todo mundo às carreiras, "o último a chegar é mulher do padre!". 
         No caminho de volta, talvez pensativa, Raíssa foi ficando para trás.  Egberto, fazendo que ajeitava o sapato até que passasse a seu lado, introduziu:
         - Acho que a gente devia conversar sobre a noite passada...
         Raíssa estava ligada, cortou:
         - A gente conversa até demais... Precisamos é de outras coisas.

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PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:

Berto Triz Tonho  Não tem nada que explicar, são coisas do momento. Quer dizer, a gente estava ali fazendo o melhor possível, no coletivo e no pessoal. Tinha esses contratempos, internet devagar, sei lá... A gente estava meio devagar também.

Gastão Cavalcanti  Internet ali, diante do ambiente, era o de menos. Do hotel, mais do que a história da revolução cubana, ou  as questões sociais ou políticas, o mais encantador era a arquitetura, as colunas, as varandas, os lustres. Já o Havana Livre é modernoso, uma cópia americana, que os cubanos tinham que assumir, é claro. Bem, já cansei de falar disso, queiram perdoar. E ainda tem os outros lugares, a herança colonial...  

Elói de Holanda Realmente, o ambiente do Hotel Nacional tem uma aura, uma mística. Mas, não tanto quanto as velhas igrejas do centro velho, isso não. É meio liberal, falta solenidade.


Eliete Barbosa  E também é democrático, em certo sentido, dos eventos etc. O movimento era constante, Cuba foi mesmo adotada pelo turismo! Quanto às mídias, é bem verdade que, em matéria de TV, são meio deslumbrados... Mas, se transferirem a cultura e a educação que têm para o digital, para a internet, ah, vão arrebentar!

Rolé de Matos  Desse lance da falta de internet, o que achei mais maneiro foi a solução caseira dos caras, os tais "pacotes semanais", a produção independente deles, em que agregam dados, filmes, programas de TV e até cópias digitais de revistas e websites, cabe tudo nos pendrives ou HDs, que depois circulam na encolha.


Amanda Onça  Os lugares lá são lindos, há conexões impressionantes entre as pessoas, o que falha são as técnicas e a distribuição. Queria que as coisas melhorassem por lá, que a informação não fosse manipulada, que a internet não estivesse presente apenas em hotéis de luxo e em casas abastadas. Em suma, há sérios problemas estruturais em Cuba, e necessitam ser corrigidos.

Leonil de Moura  Então... As questões técnicas da internet devem melhorar, parece que os chineses vão bancar um cabo de fibra ótica submarino de alta qualidade, não sei de onde vem. De qualquer modo, a rapaziada desenvolveu um grau de informalidade criativa de dar inveja à indústria pirata brasileira, e olha que a gente que mexe com isso no Brasil é esperta, faz de tudo... Tem jeitinho brasileiro também por parte do governo, que proíbe, mas não só finge que não vê como também aproveita indiretamente, passa as informações oficiais nos pacotes. Cuba é que nem Brasil: não é lugar para principiantes (não vou dizer profissionais, que nem todo mundo lá ou aqui é, mas se vira).

Russa Pimentel  A gente tem que respeitar. Quando as coisas não estão maduras, é preciso tempo, paciência e jeito para cuidar. Vale até para a questão das tecnologias lá em Cuba, que, pela esperteza (e educação) do povo, daqui a pouco, é só acessarem os meios, vão dar show em internet, e essas coisas. Eu mesmo, com essa idade toda, ainda estou amadurecendo...  

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