7/02/2015

11 - Jantando a Calle Obispo

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         O programa da noite era simplesmente passear pelo centro, por La Habana Vieja, necessidade de tomar pé da cidade... Para um habitante local, esta distância, saindo de Vedado, podia ser excessiva, mas não para turistas estrangeiros e outros viajantes animados... E também, no caso, porque há na psicologia humana esta velha armadilha: as pessoas sempre se dispõem a repetir experiências prazerosas. Em suma, resolveram ir a pé pelo Malecón mais uma vez, e La Rampa viu de novo aquela procissão cacarejante, disposta a repetir o trajeto da véspera. Uma animação que, desta vez, durou bem menos, e esta parece ser a lição que vem da experiência: a repetição nunca tem o mesmo gosto... Às vezes, sabe até melhor, mas, naquele princípio de noite, a ansiedade e a animação de chegarem logo a Havana Velha valeram mais.
         Amanda sugeriu que pegassem uma "lotada" local, um táxi coletivo ou coisa que o valha. Bastava fazer sinal ao primeiro, não de todo ocupado, que passasse e negociar o preço. Ou, nem isso, que o valor, conforme a distância, era praticamente tabelado. Nas circunstâncias, o melhor e mais barato esquema de transporte. Acontece que a parte mais conservadora da turma (ou os de menor preparo físico ou os de mais idade), isto é, Gastão e os formais (ou potenciais) casais Elói & Eliete e Egberto & Raíssa, estes preferiram esperar por um táxi vazio. Uma forma também de viver a experiência de passear em um dos famosos carros americanos conservados pela engenhosidade e pela necessidade cubana pós-revolucionária, e lhes apareceu de imediato um Chevrolet Bel-Air 1955 como todo seu charme azul e branco, um modelo que, desde criança, enchia os olhos de Elói.
O táxi
         Combinaram de se encontrar na Praça de São Francisco, centro da área histórica, frente ao Terminal Sierra Maestra, onde aportam navios de cruzeiros, o lugar mais fácil de chegar, bastava seguir o Malecón e a Avenida del Puerto, que o sucede, da costa do mar para a da baía. Sem pressa, o quinteto deixou (ou melhor, pediu...) que o motorista do Bel-Air flanasse pelas avenidas, enquanto observavam e apreciavam as construções e os monumentos não reconhecíveis ainda... 
Em frente à rua Amargura
         Sendo uma sexta-feira sem muito movimento nas ruas, nem mesmo o turístico (deviam estar nos eventos do FIAP, e eles não…), encontraram com facilidade o restante da trupe, já espalhada pela praça, divididos entre as luzes dos hotéis, na esquina das ruas Ofícios e Amargura, e as da catedral colonial de São Francisco de Assis. 
Catedral de São Francisco de Assis
         A rota "quente" (ensinou-lhes Amanda Onça) era seguir pela Ofícios e pegar a Obispo.  Há em Havana, além do Malecón, esta outra espécie de "calçadão" ou "passarela de desfiles", pelo menos para turistas: a Rua Obispo (ou "Calle Obispo", em espanhol, o que, dito como um termo só, é muito mais expressivo). Ainda que mal comparando, a Calle Obispo é o que foi, um dia, no Rio de Janeiro, a Rua do Ouvidor: todo mundo "precisa" passar por lá! 
Calle Obispo
         Ao percorrer a bem iluminada rua, os brasileiros, tão descolados quão deslocados, faziam na prática, sem perceber, um balanço urbanístico de Havana. A rua Obispo mantém preservados uns bons exemplos de "clássicos" da arquitetura, entre eles preciosidades do art-déco, e, ao mesmo tempo, convive com infiltrações da modernidade, de centros universitários a prédios de escritórios. Uma mistura que é consequência, mais uma das ironias cubanas, entre tantas, tanto dos mais de 50 anos de bloqueio econômico americano quanto dos tempos de dureza e solidão política pós-queda do muro de Berlim.
Edifício Obispo
         Bom exemplo de preservação é o próprio Edifício Obispo, no número 306, que se apresenta ao passante como sede do "Departamento Provincial del Registro de la Propiedad", também evidência de como a questão da propriedade assumiu importância central após a Revolução de 1959, hoje despreocupadamente guardado por um "clássico" vigia, exemplo de função em desuso no capitalismo pesadamente armado do Brasil atual.
         A Obispo estava movimentada e disponível a qualquer um, de turista a mendigo, outra das "profissões" menos frequentes em Cuba do que no Brasil. Como eram todos artistas, fez-se logo uma interação entre os da Zás-Brás e o camarada da cadeira de roda e perna postiça de chamariz, que se divertiu com as imitações, do tipo "deixa que eu chuto", de Leonil.

Pedindo na Obispo
         Até as desgraças têm sua graça... Saíram todos se divertindo, imaginando as "peças" que apresentariam para (ou que pregariam a) aflitos turistas. Deixaram para trás, como colaboração, um pouco de alegria, que era na prática a única moeda de troca de que dispunham. Levaram preocupações sobre o pedinte: seria aposentado do serviço social cubano, teria atendimento pela medicina grátis e generalizada do país, precisava de CUCs para complementar a renda?...


Namorando na Obispo
         Solidariedade artístico-social sempre dá muita fome!... Soluções baratas estavam à vista: bastava se encostar a um dos vãos ou portas de pequenos comércios que vendiam os mais variados lambiscos. Nestes cantinhos, os produtos até que eram globalizados: todos ofereciam, como "peça de resistência", a indefectível pizza. Fora o desconforto de comer em pé e a questão da higiene, havia o problema do espaço, pouco, não mais do que a pouca largura da calçada. E estavam entre os pontos de encontro preferidos pelos namorados, e todos sabiam o quanto de tempo dura uma refeição amorosa...

Pizza na Ofícios
         Amanda ainda se lembrou de uma placa na rua Oficios, um "paladar" que oferecia pizza, no primeiro andar do prédio residencial. Explicou pacientemente que "paladares" são pequenos restaurantes caseiros, atividade formalizada pelo governo durante a crise de recursos dos anos 1990, e que costumam ter boa comida e barata. Não convenceu de todo. Não era hora de experimentar e teriam que voltar quadras demais...
          Logo em seguida Eliete vislumbrou, ainda meio de longe, quase sem movimento, um espaçoso restaurante que oferecia "variedades gastronômicas" e, detalhe, aceitava a chamada moeda nacional... 

"Variedades Obispo"

         Elói tratou de se adiantar, queria garantir mesa para todos, mas deu de cara na porta: embora as luzes estivessem acesas, o restaurante funcionava apenas de dia. E atendia basicamente aos cidadãos cubanos, a preços subsidiados, em pesos cubanos, o CUP, a moeda de uso interno, e certamente não aceitariam o CUC, a moeda que os turistas recebem ao fazer câmbio e que faz a alegria dos donos dos paladares...

"Bar La Casa del Escabeche"
         Egberto sugeriu comer alguma coisa no Bar La Casa del Escabeche, praticamente um boteco carioca, estabelecimento aconchegante, cheio de gente animada pelo som de violões e de alguém cantando, mais um ambiente totalmente dominado pelo futebol, coroado pela bandeira do Barcelona. Uma evidente demonstração de com que a força o futebol invade o país, mas, por enquanto, só o europeu: nada de clubes brasileiros e nem mesmo, para lamento de Rolé, o Flamengo... Sim, muito legal, o local seria uma solução simpática, mas apresentava um probleminha imediato: não havia mais lugar para tantos famintos...

"Librería Venecia"
         De qualquer modo, a caminhada pela rua Obispo continuava valendo a pena. Haveriam de encontrar um lugar para jantar qualquer coisa, certamente curtindo música cubana, cujo som se repetia a cada bar, sempre ao vivo, e eles só precisavam de algum conforto e espaço.

"Libreria Victoria"
         Se esta fosse uma fome de ideias ou histórias, seria mais fácil atender... Duas pequenas livrarias (e talvez outras mais que não notaram) estavam abertas (mas vazias) àquela hora da noite, quase virando para o outro dia. Alguns daqueles desesperados, esquecendo um pouco a aflição, não resistiram e se aproximaram, dando rápidas olhadas nas estantes. Ligeiras, que não era mesmo hora de parar e de ler: a fome, esta assassina nada literária, rondava aquelas mentes, fazia roncar os estômagos...

"La Moderna Poesia"
         Até mesmo uma grande livraria, com todo o charme arquitetônico de décadas passadas (de novo, o velho art-déco bem conservado) lhes apareceu pela frente. Não era o interesse do momento e, de qualquer modo, a exemplo do restaurante popular, estava completamente fechada, nada turística...

         Afinal, um lugar para jantar!... Ou, pelo menos, para confraternizar. E tomar umas cervejas, ouvir música cubana... Um restaurante de estilo clássico e decoração art-nouveau, com pesadas toalhas verdes sobre outras brancas em cima de mesas de madeira escura, com lustres rechonchudos espalhados pelas paredes recém-pintadas em ocre e pêssego. Um espaço grandioso, dominando uma esquina, com portas altas e envidraçadas, com as iniciais "RE" gravadas nos vidros, em alusão ao nome: Restaurante Europa. Havana também copiou a Europa e o restaurante terá tido momentos da maior glória, mas para eles, agora, eram animadores, no sentido de baixos, os preços do cardápio afixado à coluna de entrada, indicando a opção ideal para um fim de noite sossegado de uma trupe de famintos...
         E apresentava outras grandes atrações, que em Cuba não falta arte!... Na lateral que dava para a rua Aguiar o salão estava livre para a apresentação do, como informava o estandarte pendurado do teclado, "Septeto Típico de Sones", um grupo musical multicentenário, se feita a soma das idades, e de carreira  quase centenária, criado em 1924 (90 anos!), e dirigido por um maestro que certamente passava dos 80... 
No Restaurante Europa


         Entre os músicos e as mesas, os volteios de um casal profissional que aproveitava toda a ginga que a música cubana sugere e, às vezes, conforme o embalo do som ou das bebidas, as desajeitadas danças de gringos entusiasmados.
         Terminar a noite aí já estava de muito bom tamanho!... Afinal, algum ensaio precisava ser feito, se possível logo na manhã seguinte, nem que fosse apenas para evitar o enferrujamento daquelas mentes criativas. E a Zás-Brás também precisava traçar imediatamente alguma estratégia artística específica, e alguns até se preocupavam com isso: a apresentação em Cuba já estava marcada!
        
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PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:
Eliete Barbosa  Estou aqui assistindo uns vídeos do Yamandu Costa, lembrei da música dos caras, que também é linda demais, mas triste, às vezes me dá vontade de chorar. Prefiro a nossa música, a brasileira, só que nem sei mais qual é a nossa... 

Berto Triz Tonho  Acho que todos sabem que os cubanos passaram a chamar estes restaurantes particulares de "paladares" por influência de uma novela vendida a eles pela Rede Globo, sugestivamente chamada de "Vale Tudo".

Elói de Holanda  Ah, adorei passear naquele Bel Air 55!... Lembro-me de um, igualzinho, quando eu era garoto, nas ruas do Rio. Graças a Deus os cubanos conservaram estas relíquias, um verdadeiro ato de veneração!

Russa Pimentel  Que mané veneração, cumpade... Será que você não sacou que essa "bolha automobilística" deve-se, quase exclusivamente, ao bloqueio americano?... E também às limitações geopolíticas, é claro. Tanto é que, de vez em quando, o governo cubano até que conseguiu dar um bote no "mercado" e beliscar um alívio... Estão lá, para demonstrar minha tese, os Lada russos, alguns ônibus brasileiros (acho que do tempo do FHC) e vários tipos de veículos chineses. Com a grana do turismo, que virá literalmente para salvar a pátria, especialmente com a chegada dos ianques, bem que está na hora dos cubanos investirem em transportes coletivos decentes, que decididamente aqueles busões dinossáuricos já passaram do ponto...

Gastão Cavalcanti  Meus caros, imaginem o Museu do Automóvel cubano!... Seria um sucesso mundial, visitantes de todo mundo iriam conhecer. Aliás, é bem capaz de que já exista, os cubanos são praticamente especialistas em museus de tudo!... É pena, mas não creio que o Estado vá bancar mais esta, de comprar (ou desapropriar) carros para fazer museus... Mas, que seria lindo, ah, seria!

Leonil de Moura  Rapaz, aquela coleção absurda de carros antigos, aqueles elegantíssimos modelos americanos dos anos 50, todo aquele estoque de 'memorabilia' automobilística deve valer mais do que o todo o resto da economia cubana!... É um patrimônio nacional (ainda que de origem estrangeira...) e deve continuar, sei lá como, sendo preservado, talvez através de uma extemporânea lei revolucionária!... Essa ideia do museu é boa... Pô, pena que não me apareceu (mas ainda vou voltar lá e procurar!) um Plimouth 1949 conversível amarelo, com detalhes em vermelho no painel e nos bancos, igual ao que meu pai comprou quando eu era criança...

Rolé de Matos  Cara, volte logo lá, agora, e procure a sua infância perdida!... Ache esse tal "carro maravilha" e compre!... Faça-o agora: é a sua última chance!... Pode ter certeza: assim que os americanos recolocarem as mãos sobre a ilha (que os pés, os dos turistas, já estão lá), a primeira coisa que farão será a compra (no atacado!) de todas aquelas belezuras mecânicas (isso, sem contar as humanas, que nisto são especialistas)... Vão comprar tudo baratinho, carros aos montes, embalar em celofane (digo, em plástico) e mandar entregar lá nos States!... Vai ser o maior agito no sempre animado mercado de carros usados, um belo exemplo de que, além de criar mercadorias, o capitalismo também sabe reciclá-las!... (E ainda dizem que não são ecológicos!...) Cara, tudo isso é muito  “vintage”!... Cuba é muito “old stile”!... Agora, que aquele Chevrolet Bel Air era uma gracinha, lá isso era...

Berto Triz Tonho  Caramba, vocês só falam de carros!... Parece que é só isso que viram lá!... Ninguém notou que havia pessoas nas ruas, aliás, no país?... Pô, vamos falar de cultura, do social, das artes...

Russa Pimentel  Diante do sufoco que passaram (e ainda passam) não é de admirar que se virem nas ruas, cada um com sua "arte"... Afinal, não há lugar turístico no mundo que não tenha seus pedintes. Pelo menos, lá em Cuba não se tem assaltantes à mão armada, mas me disseram, não vi, que não faltam "descuidistas"...

Amanda Onça  Sabe duma?... É até melhor que eles se livrem logo daqueles trastes rodantes e que deem mais atenção aos andantes... Eles estão precisando de grana!... Não adianta nivelar a sociedade por baixo e continuarem atrasados: aquilo lá não é comunismo coisa nenhuma!

Rolé de Matos  Calma, Amanda, não seja tão onça assim... Automóvel, realmente, não é nada comunista. Pelo menos, não é ecocomunista (epa!). Quero dizer, usando a nomenclatura (ui!) disponível, transporte privado não é nada ecossocialista... Duvido, por exemplo, que eles trocassem aqueles carangos velhos por bicicletas ainda que novinhas...

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