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O programa da noite era simplesmente passear pelo centro, por La Habana Vieja, necessidade de tomar pé da cidade... Para um habitante local, esta distância, saindo de Vedado, podia ser excessiva, mas não para turistas estrangeiros e outros viajantes animados... E também, no caso, porque há na psicologia humana esta velha armadilha: as pessoas sempre se dispõem a repetir experiências prazerosas. Em suma, resolveram ir a pé pelo Malecón mais uma vez, e La Rampa viu de novo aquela procissão cacarejante, disposta a repetir o trajeto da véspera. Uma animação que, desta vez, durou bem menos, e esta parece ser a lição que vem da experiência: a repetição nunca tem o mesmo gosto... Às vezes, sabe até melhor, mas, naquele princípio de noite, a ansiedade e a animação de chegarem logo a Havana Velha valeram mais.
Amanda
sugeriu que pegassem uma "lotada" local, um táxi coletivo ou
coisa que o valha. Bastava fazer sinal ao primeiro, não de todo ocupado, que passasse
e negociar o preço. Ou, nem isso, que o valor, conforme a distância, era praticamente
tabelado. Nas circunstâncias, o melhor e mais barato esquema de transporte. Acontece que a parte mais conservadora da turma (ou os de menor preparo físico ou os de
mais idade), isto é, Gastão e os formais (ou potenciais) casais Elói &
Eliete e Egberto & Raíssa, estes preferiram esperar por um táxi vazio.
Uma forma também de viver a experiência de passear em um dos famosos carros
americanos conservados pela engenhosidade e pela necessidade cubana pós-revolucionária,
e lhes apareceu de imediato um Chevrolet Bel-Air 1955 como todo seu charme azul
e branco, um modelo que, desde criança, enchia os olhos de Elói.
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O táxi |
Combinaram
de se encontrar na Praça de São Francisco, centro da área histórica, frente ao Terminal Sierra Maestra, onde aportam navios de cruzeiros, o lugar mais fácil
de chegar, bastava seguir o Malecón e a Avenida del Puerto, que o sucede, da costa do mar para a da baía. Sem pressa, o quinteto deixou (ou melhor, pediu...) que o motorista
do Bel-Air flanasse pelas avenidas, enquanto observavam e apreciavam as construções
e os monumentos não reconhecíveis ainda...
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Em frente à rua Amargura |
Sendo
uma sexta-feira sem muito movimento nas ruas, nem mesmo o turístico (deviam estar
nos eventos do FIAP, e eles não…), encontraram com facilidade o
restante da trupe, já espalhada pela praça, divididos entre as luzes dos
hotéis, na esquina das ruas Ofícios e Amargura, e as da catedral colonial de
São Francisco de Assis.
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Catedral de São Francisco de Assis |
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Calle Obispo |
Ao
percorrer a bem iluminada rua, os brasileiros, tão descolados quão
deslocados, faziam na prática, sem perceber, um balanço
urbanístico de Havana. A rua Obispo mantém preservados uns bons exemplos de
"clássicos" da arquitetura, entre eles preciosidades do art-déco, e, ao mesmo tempo, convive
com infiltrações da modernidade, de centros universitários a prédios de
escritórios. Uma mistura que é consequência, mais uma das
ironias cubanas, entre tantas, tanto dos mais de 50 anos de bloqueio econômico americano quanto dos
tempos de dureza e solidão política pós-queda do muro de Berlim.
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Edifício Obispo |
Bom
exemplo de preservação é o próprio Edifício Obispo, no número 306, que se
apresenta ao passante como sede do "Departamento Provincial del Registro
de la Propiedad", também evidência de como a questão da propriedade
assumiu importância central após a Revolução de 1959, hoje despreocupadamente
guardado por um "clássico" vigia, exemplo de função em desuso no
capitalismo pesadamente armado do Brasil atual.
A Obispo estava movimentada e
disponível a qualquer um, de turista a mendigo, outra das
"profissões" menos frequentes em Cuba do que no Brasil. Como eram
todos artistas, fez-se logo uma interação entre os da Zás-Brás e o camarada da cadeira
de roda e perna postiça de chamariz, que se divertiu com as imitações, do tipo
"deixa que eu chuto", de Leonil.
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Pedindo na Obispo |
Até as desgraças têm sua graça... Saíram
todos se divertindo, imaginando as "peças" que apresentariam para (ou
que pregariam a) aflitos turistas. Deixaram para trás, como colaboração, um pouco
de alegria, que era na prática a única moeda de troca de que dispunham. Levaram preocupações
sobre o pedinte: seria aposentado do serviço social cubano,
teria atendimento pela medicina grátis e generalizada do país, precisava de CUCs para complementar a renda?...
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Namorando na Obispo |
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Pizza na Ofícios |
Logo em seguida Eliete vislumbrou, ainda meio de longe, quase sem movimento, um
espaçoso restaurante que oferecia "variedades gastronômicas" e,
detalhe, aceitava a chamada moeda nacional...
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"Variedades Obispo" |
Elói tratou de se adiantar, queria garantir
mesa para todos, mas deu de cara na porta: embora as luzes estivessem
acesas, o restaurante funcionava apenas de dia. E atendia basicamente aos
cidadãos cubanos, a preços subsidiados, em pesos cubanos, o CUP, a moeda de uso
interno, e certamente não aceitariam o CUC, a moeda que os turistas recebem ao
fazer câmbio e que faz a alegria dos donos dos paladares...
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"Bar La Casa del Escabeche" |
"Librería Venecia" |
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"Libreria Victoria" |
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"La Moderna Poesia" |
Afinal,
um lugar para jantar!... Ou, pelo menos, para confraternizar. E tomar umas cervejas, ouvir música cubana... Um restaurante de estilo clássico e
decoração art-nouveau, com pesadas toalhas
verdes sobre outras brancas em cima de mesas de madeira escura, com lustres
rechonchudos espalhados pelas paredes recém-pintadas em ocre e pêssego. Um
espaço grandioso, dominando uma esquina, com portas altas e envidraçadas, com
as iniciais "RE" gravadas nos vidros, em alusão ao nome: Restaurante Europa. Havana
também copiou a Europa e o restaurante terá tido momentos da maior glória, mas para
eles, agora, eram animadores, no sentido de baixos, os preços do cardápio afixado
à coluna de entrada, indicando a opção ideal para um fim de noite sossegado de
uma trupe de famintos...
E
apresentava outras grandes atrações, que em Cuba não falta arte!... Na lateral que dava para a rua Aguiar o salão estava livre para a apresentação do, como informava o estandarte pendurado do teclado, "Septeto Típico
de Sones", um grupo
musical multicentenário, se feita a soma das idades, e de carreira quase centenária, criado em 1924 (90 anos!), e
dirigido por um maestro que certamente passava dos 80...
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No Restaurante Europa |
Entre
os músicos e as mesas, os volteios de um casal profissional que aproveitava toda
a ginga que a música cubana sugere e, às vezes, conforme o embalo do som ou
das bebidas, as desajeitadas danças de gringos entusiasmados.
Terminar
a noite aí já estava de muito bom tamanho!... Afinal, algum ensaio precisava
ser feito, se possível logo na manhã seguinte, nem que fosse apenas para evitar o enferrujamento daquelas
mentes criativas. E a Zás-Brás também precisava traçar imediatamente alguma
estratégia artística específica, e alguns até se preocupavam com isso: a
apresentação em Cuba já estava marcada!
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PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:

Berto Triz Tonho Acho
que todos sabem que os cubanos passaram a chamar estes restaurantes
particulares de "paladares" por influência de uma novela vendida a
eles pela Rede Globo, sugestivamente chamada de "Vale Tudo".
Elói de Holanda Ah, adorei passear
naquele Bel Air 55!... Lembro-me de um, igualzinho, quando eu era garoto, nas
ruas do Rio. Graças a Deus os cubanos conservaram estas relíquias, um
verdadeiro ato de veneração!
Russa Pimentel Que mané veneração,
cumpade... Será que você não sacou que essa "bolha automobilística" deve-se,
quase exclusivamente, ao bloqueio americano?... E também às limitações
geopolíticas, é claro. Tanto é que, de vez em quando, o governo cubano até que conseguiu
dar um bote no "mercado" e beliscar um alívio... Estão lá, para
demonstrar minha tese, os Lada russos, alguns ônibus brasileiros (acho que do
tempo do FHC) e vários tipos de veículos chineses. Com a grana do turismo, que virá
literalmente para salvar a pátria, especialmente com a chegada dos ianques, bem
que está na hora dos cubanos investirem em transportes coletivos decentes, que
decididamente aqueles busões dinossáuricos já passaram do ponto...
Leonil de Moura Rapaz, aquela coleção
absurda de carros antigos, aqueles elegantíssimos modelos americanos dos anos
50, todo aquele estoque de 'memorabilia' automobilística deve valer mais do que
o todo o resto da economia cubana!... É um patrimônio nacional (ainda que de
origem estrangeira...) e deve continuar, sei lá como, sendo preservado, talvez
através de uma extemporânea lei revolucionária!... Essa ideia do museu é boa...
Pô, pena que não me apareceu (mas ainda vou voltar lá e procurar!) um Plimouth
1949 conversível amarelo, com detalhes em vermelho no painel e nos bancos,
igual ao que meu pai comprou quando eu era criança...
Rolé de Matos Cara, volte logo lá,
agora, e procure a sua infância perdida!... Ache esse tal "carro maravilha"
e compre!... Faça-o agora: é a sua última chance!... Pode ter certeza: assim
que os americanos recolocarem as mãos sobre a ilha (que os pés, os dos turistas,
já estão lá), a primeira coisa que farão será a compra (no atacado!) de todas
aquelas belezuras mecânicas (isso, sem contar as humanas, que nisto são
especialistas)... Vão comprar tudo baratinho, carros aos montes, embalar em
celofane (digo, em plástico) e mandar entregar lá nos States!... Vai ser o
maior agito no sempre animado mercado de carros usados, um belo exemplo de que,
além de criar mercadorias, o capitalismo também sabe reciclá-las!... (E ainda
dizem que não são ecológicos!...) Cara, tudo isso é muito “vintage”!... Cuba é muito “old stile”!...
Agora, que aquele Chevrolet Bel Air era uma gracinha, lá isso era...
Berto Triz Tonho Caramba, vocês só falam de carros!... Parece que é só isso que viram lá!... Ninguém notou que havia pessoas nas ruas, aliás, no país?... Pô, vamos falar de cultura, do social, das artes...
Russa Pimentel Diante do sufoco que
passaram (e ainda passam) não é de admirar que se virem nas ruas, cada um com
sua "arte"... Afinal, não há lugar turístico no mundo que não tenha
seus pedintes. Pelo menos, lá em Cuba não se tem assaltantes à mão armada, mas
me disseram, não vi, que não faltam "descuidistas"...
Amanda Onça Sabe duma?... É até
melhor que eles se livrem logo daqueles trastes rodantes e que deem mais
atenção aos andantes... Eles estão precisando de grana!... Não adianta nivelar a sociedade por baixo e continuarem
atrasados: aquilo lá não é comunismo coisa nenhuma!
Rolé de Matos Calma, Amanda, não
seja tão onça assim... Automóvel, realmente, não é nada comunista. Pelo menos,
não é ecocomunista (epa!). Quero dizer, usando a nomenclatura (ui!) disponível,
transporte privado não é nada ecossocialista... Duvido, por exemplo, que eles
trocassem aqueles carangos velhos por bicicletas ainda que novinhas...
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