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A incerteza é um fértil campo para o esforço criativo:
desgasta, mas estimula. E se nem toda previsão dá certo (hei, não comentem isto
com os meteorologistas!), a ilusão do sucesso é muito útil: por muito mais
tempo mantém a paciência do impaciente... Já chegando a Cuba, a maioria dos (meio
que) circunstanciais membros da trupe estava tranquila: para quem passeia,
qualquer caminho é divertido.
Além de Leonil, também Egberto se preocupava (e talvez muito
mais) com os resultados da excursão. Sua premonição sobre um possível insucesso
podia ser verdadeira e as coisas, ao final, realmente não darem certo, mas até então
estava indo bem esta primeira, e não fazia idéia de quando haveria outra,
excursão internacional da Zas-Brás Elucubrações Artísticas. O que realmente
incomodava Egberto, e tentava não pensar nisso, era o risco de tornar-se um
causador de crises. Ou, pior (e, em pleno ar condicionado do avião, se
arrepiava todo) ser o causador d’A Crise...
É claro que Leonil tinha razão: recebera total garantia, do
próprio Egberto, de que assistiria pela TV a cada um dos jogos da Copa do
Mundo, independente da estranheza do lugar ou da esquisitice da situação. Todo
artista tem suas exigências, de camarim ou de cama, desde rosas brancas até
cocaína da boa, entre as que podem ser citadas sem susto, e assistir à Copa pela
TV era uma fissura bastante razoável... O próprio Egberto, por mais que considerasse
a maioria dos garotos que atualmente vestiam a amarelinha completamente
dispensáveis (“Estão muito longe dos craques do meu tempo, falta-lhes aquela categoria!”)
e odiasse o Felipão, não queria perder os jogos da seleção.
Faltavam algumas horas para a estreia do Brasil na Copa, o
jogo inicial, contra a Croácia, e todo mundo (aliás, o mundo todo!) estava
ligado no Itaquerão, aquele estádio (epa!, corrigindo, aquela arena)
repentinamente construído(a) em São Paulo e entregue, de campo aberto, ao
Corinthians. Todo mundo nessa, e eles ali, encruados pelo atraso na chegada a
Cuba, por razões praticamente surrealistas: uma neblina matinal colombiana
muito preguiçosa e um engarrafamento aéreo de cubanos muito consumistas...
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Bagagens dos cubanos |
Agentes de imigração até podem ser benevolentes,
compreensivos ou mesmo preguiçosos, e já tivera sorte em Bogotá, mas, quando o
país é desconfiado ou os chefes estão de olho, é óbvio que alguma coisa
metálica na cintura do sujeito não tem a menor chance de passar... No que o
detector de metais chiou na sua mão, o policial de fronteiras cubano deu um
pulo para trás. Leonil abriu seu melhor sorriso e, com ele, a braguilha,
tentando mostrar o óbvio: o causador do barulho era o puxador do fecho-éclair, e apenas o gancho, que o trilho do
zíper era de plástico, e inclusive só havia dinheiro em notas na bolsa, nada de
moedas...
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De bandeja na alfândega |
Não adiantou. Leis são leis, segurança é segurança, e paranóias
(e perigos) existem... Sob o olhar de toda a equipe da alfândega e de muitos
passageiros (enquanto o resto da trupe se descolava e saía), o agente exigiu a
apresentação pública do tal objeto metálico que acionara o alarme. O aflito Leonil
precisou descascar várias camadas, uma operação corporal complexa (muito mais
para strip-tease do que para
terrorismo), para colocar em cima de uma mesa todas as coisas que amontoara na
mão, recuperadas da bandeja do aparelho de raios-X (passaporte, câmera,
carteiras, moedas, cinto...), e ainda o paletó de lã, que teve que tirar (e até
foi bom, estava suando...), e depois levantar a camisa, abaixar as calças e
esticar o elástico da bolsinha, tudo isso para poder retirá-la pela cabeça e mostrar,
finalmente, a suspeitosa peça metálica ao zeloso guardião. O agente fez cara de
enfado, meio decepcionado, e, tudo bem, aceitou as explicações.
Sem a menor preocupação com a elegância, Leonil tratou de
agilizar a reconstituição da imagem. Enquanto se (re)vestia, ainda precisou,
como todos, parar em dois outros fiscais, para entregar o formulário de entrada
no país e o tíquete da bagagem, até que, finalmente, pode respirar o ar oficial
de Cuba, livre (ele achava) daquela confusão... Sua cabeça, porém, estava no
Brasil: faltava pouco para o jogo inicial da Copa, devia estar perdendo o (com
certeza!) imperdível show de abertura.
Em rápida olhada, conferiu o aeroporto: nada de televisões,
só painéis de informação. Mas, para quem queria chegar rápido ao hotel, havia
boa oferta de táxis! Não foi tão rápido porque Eliete, com preocupações históricas
e afetivas, fez questão da foto de grupo: tratava-se da primeira excursão
internacional da Zás-Brás!... Para adiantar o serviço (que acabou prejudicado),
Egberto pediu de volta sua maquininha prateada, a de lente arranhada.
Leonil até se esqueceu da aflição:
- Você tem que ver a foto da ilha Cayman, que fiz!
E meteu a mão no bolso do paletó para sacar a câmera e
mostrar a arte.
- Ei, cadê a máquina?... Caraca!... Acho que deixei lá na
aduana...
Não pensou duas vezes, não ouviu ninguém... Deu meia volta,
direto para a funcionária sentada ao lado do último portão, a que recolhia o
tíquete da bagagem:
- Preciso voltar lá na alfândega, esqueci a máquina
fotográfica!
Para sua surpresa, a morena não chamou o supervisor, nem
duvidou do motivo: com um gesto leve de mão, liberou passagem. O mesmo fez o
senhor da parada seguinte, o que recolhia os formulários da imigração. Fazendo
a curva, Leonil retornou à penumbra do conjunto de máquinas de raios-x. Diante
dele, espantados com aquela inversão do roteiro, um bando de fiscais. Sentindo
necessidade de ser preciso, Leonil olhou o grupo inteiro e, talvez lembrando a
dica do seu xará no avião, escolheu o cara que parecia ser o chefe, o rapazola
mais empertigado (e branco) que viu. Partiu para cima dele e explicou o
problema. O jovem oficial da alfândega, em voz alta, perguntou geral pela
câmera, e já Leonil partia para o funcionário que o revistara. Antes de qualquer
resposta, uma funcionária ao fundo levantou o braço e perguntou:
- É esta?
Era. E Leonil mostrou-se tão feliz (que ali estava muito da
memória recente da Zás-Brás, inclusive da própria viagem), e abriu os braços de
forma tão teatral, e foi tão sorridente nos agradecimentos que quase saiu
aplaudido pelos agentes... Voltou sob olhares gerais, atendendo à curiosidade de
outros fiscais, até que, com a câmera pendurada na ponta dos dedos, adentrou,
pela segunda vez, à ilha de Cuba. Encontrou uma triunfal recepção de seu solidário
grupo, só um pouco descompensada pela irritação de Egberto...
- Ainda bem!... Pensei que já ia começar a sambar em Cuba!...
Gastão tratou de aliviar:
- Ei, vamos nessa, pessoal?... Já arrumei um táxi grande,
uma espécie de caminhonete chinesa, cabe todo mundo. Aí, Leo, acelera!... Tá faltando
pouco mais de meia hora para o jogo começar.
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A turismóloga do balcão |
Agora sem pressa, Egberto queria fotografar... Retratou a turística senhora do balcão de informações, com seu coletinho azul,
blusa amarela e animado sorriso, mais
espalhado que o mapa gigante de Cuba que pendurou no balcão. De passagem, fez
fotos de carregadores de malas e de taxistas disputando clientes, e só parou quando
Leonil ameaçou (re)sequestrar a câmera e começou a empurrá-lo para a van, toda
aberta, à espera.
Ora, faltava ainda uma paradinha, e que foi longa, para o
câmbio... Com dois guichês abertos, a demora ficou por conta da indecisão dos
viajantes: trocar dólares ou euros?... Decisão facilitada pela (re)lembrança de
Raíssa, a de que Cuba, em resposta ao bloqueio americano, aplicava uma
sobretaxa de 13% em cima do dólar, mas não sobre o euro...
Rolé, debochado, deu logo o mote:
- Guardem os dólares para as compras no Panamá!... Ou, quem
quiser levar algum do bom, para a Colômbia!
E os tais CUCs?... O que significava CUC?... Bem, a maioria,
sabendo apenas que era a grana que valia, trocou euros por CUCs, que depois se
informariam dos detalhes. Agora, para aqueles brasileiros deslocados, era sair
batido para o hotel, a mais imediata possibilidade de assistir na TV ao jogo
inaugural da Copa, transmitido diretamente do Brasil, aquele distante país...
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O desfile das palmeiras |
Pela janela da van, Egberto ainda enquadrou um desfile de
palmeiras, antes de virar para dentro e dar a deixa:
- Quando a gente chegar ao hotel, tenho uma surpresa para
vocês!
- O quê?... Férias?... Uma grana extra?...
- Ah, muito melhor!... Gente!
Lá fora, os comandantes da situação continuavam sendo, indiferentes
às paixões humanas, o sol e o vento do Caribe.
--
PaCuCoBras [grupo fechado] –
Comentários:
Leonil de
Moura A gente sabe de tantas histórias de desvio de bagagens e de outras
espertezas em aeroportos, que depois fiquei me perguntando: o que foi aquilo,
afinal?... Uma demonstração de honestidade intrínseca ou o mero cumprimento do
dever?... Uma amostra da cultura ética desenvolvida pela educação cubana pós-revolução
ou, no ato, apenas uma atitude prática dos fiscais, para ninguém ficar mal com
a chefia?...
Elói de
Holanda Vc foi abençoado, irmão!... Certamente há gente piedosa entre os
funcionários da alfândega. Encontrou profissionais sensíveis, que perceberam
sua angústia. Talvez funcionários oficialmente ateus, mas há muita
religiosidade natural no povo cubano. Naquele momento, deve ter baixado entre
eles algum espírito caridoso, podes crer!
Eliete
Barbosa Olha, acho que, se o Leonil de Moura
se deu bem, foi na base da simpatia. Ou simplesmente porque é um grande ator.
Sem uma boa cena, representando o papel de enrolado e perdidaço, ficaria no
prejuízo. Até porque o Berto ia encher a paciência dele, hehehe...
Rolé de Matos
Achei muito esperta a sua escolha de quem seria o chefe, aproveitou bem
a dica do racista, foi safo!... E depois a gente confirmou que Cuba mantém o
padrão da maioria dos países latino-americano, essa reminiscência dos tempos
coloniais: os descendentes das antigas elites, revolucionárias ou não,
continuam no poder...
Russa
Pimentel Tem razão, Rolé de Matos. Independente
da proposta revolucionária e do esforço de sobrevivência ao bloqueio americano,
permanece lá a velha diferenciação étnico-social latino-americana, com os
cubanos de origem ibero-europeia (37%) mantendo o poder, enquanto a grande
maioria da população é de ascendência africana.
Berto Triz Tonho E
isso também vale para os descendentes dos povos originais (que lá quase
acabaram), Russa Pimentel: a escravidão, na
América Latina, é um fantasma vivo!... Até que há, agora, uma exceção, a Bolívia
dessa era Evo Morales, que surpreende em matéria de democratização social e
étnica do poder. E também pode ser o caso do Equador, apesar do presidente de
padrão étnico "tradicional"... Porém, reconheçamos, Cuba, em relação ao
Brasil, é um país socialmente mais justo (sem a nossa abismal má distribuição
de renda) e tem um racismo que parece menos mortal (sem massacres de negros
adolescentes pobres, por exemplo). E, aliás, nem se compara aos EUA, onde estão
de volta, apesar do Obama, os grandes conflitos raciais dos anos 1960...

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