4/16/2015

05 - Performance nebulosa

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          Uma noite sanduíche. Uma noite bate-pronto. Uma noite meio... Enfim, uma noite mal dormida. Chegar ao hotel às 21h, dormir às 22h e acordar, para viajar, às 3h da matina, se isto não foi melhor do que simplesmente perder o sono, foi, pelo menos, pouco sono... E, sem dramas nem contestações, a mesma van que os recolhera, esbagaçados, no El Dorado, se encarregou de devolvê-los, estremunhados, ao aeroporto.

Coisa muito nebulosa... Nem raiara o dia e já se adivinhava um sol encoberto por uma aparentemente definitiva névoa. O anfiteatro dourado continuava aberto, madrugada a dentro, aos atores, que desperdiçaram mais esta chance de sucesso. Os sete seguiram sonados até o embarque, que já estava na hora, todos sonhando, por incrível que pareça, com a apertada maciez das poltronas do avião. 
El Dorado nebuloso
O voo até o Panamá, já sabiam, durava pouco mais de uma hora, que se aproveitasse ao máximo o conforto. E realmente, no que se aboletaram nos lugares escolhidos, cada um imediatamente recomeçou o sono do mesmo ponto em que fora interrompido, na madrugada, pelos próprios celulares, com o necessário reforço do telefone da recepção do hotel.
Muito tempo depois, perceberam que a decolagem custava a acontecer, que o dia amanhecia, que clareou, que continuavam ali, grudados ao chão do El Dorado. O aviso de que precisavam aguardar a dissipação da neblina, com previsão para mais uma hora, ajudou a reforçar o sono. E, enfim, como a demora ultrapassou duas horas e meia, colocaram o sono em dia: o dia finalmente começava.

Apenas se livraram da enjoada espera no avião, sob a neblina total do El Dorado, purgatório que durou quase toda a manhã, vem a decolagem, rápida curva à direita sobrevoando Bogotá e, logo, a cordilheira dos Andes tomou conta das cenas da janelinha da aeronave, a partir daí a melhor TV, ao menos para Egberto.
Neblina na pista de Bogotá
Rapidamente surge, e ganha absoluto destaque, um digníssimo vulcão, um belo cone vulcânico, versão simplificada, pelo menos na imagem, de seu correspondente japonês, o monte Fuji. Um vulcão ao estilo clássico: o cone da montanha, as raias laterais alternando lava e neve, o cume embranquecido e a perfeita pontaria vertical. O bico de pedra apontando para o céu, no qual, cumprindo seu destino, despejará, ainda muitas vezes, as entranhas ferventes da terra. Um belo vulcão, na cordilheira Central da Colômbia: só podia ser, pelo mapa da revista de bordo, o Nevado del Ruiz.

- Bum!...
Da janelinha ao lado, enfiando a cara na fresta entre a poltrona e a parede do avião, Rolé, com um susto, trouxe-o de volta ao voo.
Vulcão não é brinquedo, não para o ser humano, certamente... Vulcões têm raízes profundas na terra, que, um dia, regurgitará. Ou não, caso seu fio de fogo seque. Só à distância são tranquilos. Ficar longe, o jeito de não sentir
Nevado del Ruiz, Colômbia
medo e admirá-los melhor. Do avião, vista panorâmica, dá belas fotos... 
Egberto, atento, logo depois descobre outro. Menos espetacular, respeitável o bastante, vulcão de cone aplastado, disfarçado pela neve suja. E que lhe importavam os nomes?... Consultaria mapas. Brasileiro carente destes excessos geológicos, agradecia aos céus (e às profundas forças da Terra) a oportunidade de encará-los pelos vidros embaçados da janelinha do avião, a esta altura de sua vida, felizmente, muito longe dos livros escolares...
Até uma cordilheira passa, e vem o litoral, uma espichada planície litorânea sem acidentes reconhecíveis, a pacífica costa da Colômbia, pelo menos àquela altura e diante de seu profundo desconhecimento da história da região. Tão rápido assim, surge um jogo de ilhas panamenhas, minúsculos paraísos tropicais. Destinos turísticos particulares, imaginou, observando a magra povoação dos lugarejos, alguns ao lado de pistas de pouso cuidadosamente encaixadas.
Daí, o largo espaço do golfo do Panamá e, nele, mais uma vez, o mar de navios!... Um surpreendente estacionamento de navios, a maioria visivelmente vermelhos, todos espalhados pelo verde-azul do oceano, aglomeração que se antecipava à própria visão do continente, ainda distante.
- Ora, este estoque de navios... Só pode ser a fila da travessia do Canal do Panamá!
E onde começava a fila? Aliás, onde começava o canal? Resposta imprecisa, e nem deu tempo de pensar: no que o avião avançava, torres brotavam no litoral!... Sim, Panama City, a versão centro-americana das cidades-espetáculo, as da península arábica, Doha e Catar, do outro lado deste mundo global... A manhã da capital panamenha também se cobria de névoa, a distância era grande, mas Egberto jamais perderia a oportunidade de fazer umas fotos, pena não poder pedir a supercâmera de Raíssa, que dormitava. Apelou para a quase sempre à mão camerazinha prateada, embora prejudicada, há meses, por um lanho na lente... 

Panama City, geral do Centro da cidade
As primeiras fotos mostravam, ao longe, palácios brancos de névoa, confusos sonhos urbanos. No que o avanço da descida retirava do seu ângulo de visão a ponta da asa, a cidade-paliteiro mostrou-se por inteiro. Apresentava-se como uma barreira de prédios que cercava o litoral, dele separando o aglomerado rasteiro que se via ao fundo, o que um dia fora a cidade normal, com casas e sobrados, talvez prédios de alguns andares... Era imensa, descomunal, a proporção dessas construções. A fieira de prédios na costa, impactantemente brancos na sua maioria, não parecia atender a uma necessidade humana, local e popular, de moradia ou trabalho, mas a um forte desígnio de poder: extrapolavam a expectativa normal... Representariam melhor, e mais, um possível cenário de filme-catástrofe, não uma necessidade de lar ou de labor.
E passavam rápidos... O avião se aproximava do solo, a poucos instantes de cruzar a linha do litoral, na direção exata do aeroporto Tocumen, ficava para trás o aglomerado pontudo de prédios, o grande bloco da massa principal de edifícios, evidentemente o centro da nova cidade. Pequeno lapso de voo e lhe aparecia outra formação de prédios, alguns quilômetros à frente, na estrita linha do litoral, 40 ou 50 andares cada, se não mais, um subcentro arquitetônico da cidade. Cidade de ambiente peculiar: em vez de praias e ondas, a lama de mangues, “manglares e humedales” da baía do Panamá, extensas e largas faixas de lodo, espécie de fundo de mar à espera de melhores marés...
Panama City, expansão da cidade

    Chegaram a Tocumen, onde sentiram-se veteranos, ainda que pisando apenas pela segunda vez as passarelas comerciais do aeroporto de Panama City. Para quem só faz conexão e, assim, não entra no país, Tocumen não passava de uma grande avenida de lojas secundadas por uma sucessão de portões de embarques. A caverna de Platão sem as sombras, substituídas pelas cintilantes luzes das melhores grifes e das mais famosas marcas mundiais. Cada uma, em caverna própria, todas elas guardadas por lobos-vendedores famintos, na disputa de clientes-ovelhas. Realmente, os turistas pareciam carneirinhos, tangidos aos voos de destino por lancinantes avisos sonoros e espalhafatosos luminosos amarelos. Nem todos, que os que têm tempo e ganância, por conta própria se deixam levar às caixas registradoras das lojas, basta que sigam as pistas expressas em dólar.
         Exatamente os bens que faltavam aos zás-brás: dólares e tempo... E o tempo, naquela hora, era o mais valioso. Por conta (e custo) do nevoeiro em Bogotá, mais de duas horas de atraso, perderam o voo das 9:16h, seriam compulsoriamente embarcados no seguinte, o das 12:57h. Com isso, a proposta de Rolé, de improvisarem um laboratório teatral (nada mais do que entrar nas lojas desfilando uma atitude olímpica, sem reparar nas ofertas, sem falar com vendedores, entrar e sair como zumbis), esta ideia tão útil à causa teatral, ficou prejudicada.
Mal tiveram tempo de olhar as lojas, mas Rolé não deixava de olhar as pessoas... Notou uma personagem estranha circulando pelas lojas de Tocumen, uma figura desentocada da sua infância televisiva, e rapidamente desconfiou da presença de outro grupo teatral (que, imaginou, certamente também iria a Cuba), e, mais, também fazendo uma performance!...
Deu meia trava para conferir melhor, até que, sempre olhando para trás, deu uma corridinha, que precisava de testemunhas, e pegou Leonil, o mais retardatário, pelo braço:
Topo Gigio nos perfumes
- Vem comigo, vamos voltar, está logo ali, o Topo Gigio no meio dos perfumes!...
- Tá maluco?
- Cara, puro teatro!... 





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PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:

Russa Pimentel Que bobagem, Rolé!... Devia ser uma fã fora do tempo ou, melhor, fora de moda... Nada a ver com um grupo de teatro. Pelo menos, pelo que sei, não se viu ninguém contracenando com ratazanas no Festival de Havana.

Rolé de Matos Tá certo, não rolou... Agora, sinceramente, aquele Topo Gigio de feltro circulando pela loja de perfumes, sei não... Deve ter algum sentido profundo, que na hora me escapou: não dá para creditar o fato apenas à estranheza humana...

Berto Triz Tonho Vejam só, um ratão perfumado!... Que bobagem, cara!... O que me impressionou mesmo no Panamá, à primeira vista, foi o próprio perfil da cidade, e depois mais ainda. Teatro por teatro, aquilo lá, fora os dramas, é que é o tremendo de um cenário!...

Gastão Cavalcanti Um verdadeiro “paredón” capitalista!... 


Rolé de Matos Olha, tem toda razão: o paredão de prédios me impressionou mais do que os vulcões.

Leonil de Moura Tem muita grana enterrada ali. Aliás, algumas daquelas fachadas podiam ser folheadas a ouro. Ou a dólar...

Elói de Holanda Até hoje me pergunto de onde veio todo esse dinheiro... Tenho certeza de que não caiu do céu!... Até porque, se fosse o caso, ao povo lá bastaria recolher a grana do chão e certamente estariam vivendo melhor.



Eliete Barbosa Ó, aviso logo, hem, hehehehe: não fui eu que mandei construir a parede de prédios!... E também não fui eu que mandei o Topo Gigio comprar perfumes!... Nem tudo é culpa minha...

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