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Aos poucos, toda aquela agitação internacional (e também carioca) ia passando. Parecia mesmo que estava tudo certo: a Zás-Brás Elucubrações Artísticas embarcara inteirinha, nenhum de seus insuspeitos artistas fora impedido de acessar a área internacional do Galeão. Estavam agora na sala de espera do embarque, aquela espécie de limbo (ou purgatório) que o viajante encara antes de partir para o seu destino. No tempo que lhes sobrava, sem perceberem, foram aos poucos se agrupando à frente da grande vidraça que espia o pátio de manobras, os aviões e seus tratadores resfolegando na pista. Comentários escasseando, olhares parados, até que os sete, com leves grunhidos, chegaram ao morno de um silêncio: uma lamúria de despedida, um antecipar de saudades?...
Elói reativou o desconforto:
- Ei, aquela igrejinha lá do outro lado, em cima da pedra,
cercada de favelas... Não é a igreja da Penha?...
Por consenso, evidente que sim. Era a mesma que se via da Linha Vermelha, "para quem presta atenção", Egberto cutucou. Quebrado o pequeno encanto,
Gastão, até então parecendo perdido em um vago futuro, deu rápida marcha a ré:
- Puxa!... Na última vez em que prestei atenção nela, que
eu me lembre (e até mostrei a um amigo que ia comigo à Europa), não havia
nenhuma favela em volta...
Recebeu o espanto incrédulo de Raíssa:
- Cara, essa viagem deve ter sido há muito tempo!... Há
mais de vinte anos que a expansão do Complexo do Alemão tomou conta da
Penha!...
Concordância e lamentos gerais, até Rolé arrematar, quase
gargalhando:
- Só espero que não roubem a igreja!... Quando a gente
voltar, que ainda esteja no alto da Penha!...
Se viajantes necessitam da âncora das lembranças, esta poderia
ser, para todos, a última imagem do Rio de Janeiro. Exceto para Egberto... Fanático
por mapas, fazia questão de ficar, como sempre, na janelinha, e por isso viu
muito mais. Com o avião partindo pela pista do sentido oeste-leste, o casario
da Ilha do Governador à direita, seu olhar se dirigia para o sul. Uma lancha puxou
o zíper da memória, rastro diagonal de espuma riscando a barriga da baía da
Guanabara, aquela velha menina-moça inocentemente adornada de pendentes navios, no pescoço uma pragmática ponte de brilhantes carros, metida num
tubinho emporcalhado que se afunilava no rumo do Atlântico, cercada de forçados
implantes urbanos e ressentidos perfis de montanhas.
- Grandioso cenário, sem dúvida!... Duvidoso é o espetáculo
que montamos...
Sim, o espaço urbano é sempre convalescente, o Rio de
Janeiro que se cuide...
Indo o voo em direção à Região dos Lagos, Egberto viu,
entre nuvens, a grande cicatriz da futura refinaria, o terreno debastado do Complexo
Petroquímico do Rio de Janeiro, o Comperj. Subindo, sua imaginação não cabia no
voo...
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A cicatriz do Comperj |
Num salto à frente, mergulhou em oleoso futuro: imaginou a onda negra que viria daquele mar que se distanciava, o banho de petróleo engolfando a cidade.
Indiferente, o avião mudava o rumo, as nuvens, em novelos
de dúvidas, encobriam o futuro. Logo sobrevoavam outro mar, o de Minas. Para
quem sai do Rio, noroeste é a direção do Panamá, na outra ponta de uma reta que
passa por Brasília e Bogotá, atravessando na diagonal, com vislumbres de
cidades e rios, o Cerrado, a Amazônia e os Andes. Quase todo o mapa real da
América do Sul sob seus olhos e Egberto acompanhava cada milha.
Os outros, bem refrigerados, mas desentrosados e apertados,
procuravam entender as regras do voo. O interlocutor imediato era a telinha,
presa à poltrona da frente. Raíssa tratou de investigar as ofertas e promoções
da própria companhia aérea, do turismo no Caribe aos produtos de maquiagem. Outras
viagens ficavam para depois, aquela por enquanto bastava. Dos cosméticos, marcas
novas a procuravam, produtos conhecidos multiplicavam formas. De qualquer modo,
o mesmo resultado: buscava que a sua imagem não mudasse...
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Refeição branca a bordo |
Eliete e Elói, uma fileira atrás, confundiam as bagagens de
mão. Desconfiados da neutralidade do bagageiro, traziam-nas de volta ao colo em
intermináveis loopings, atribulação
que só o aviso de “baixar bandejas”, porque o lanche se aproximava, conseguiu
cessar. Rapidamente entulharam as bolsas, entre as pernas e entre os dois, e se
dedicaram ao fusilli com molho branco
e às duas taças (cada um) de vinho branco. Uma refeição toda branca, quase o bastante
para deixá-los em paz...
Gastão e Leonil, pela primeira vez juntos, trataram-se
gentilmente: consultaram com a devida atenção o painel de atrações no
minivídeo, negociaram educadamente as opções de programas e, com alguma
gravidade, escolheram um filme ainda em cartaz no Rio, uma aventura espacial, Sem
Gravidade. Assistiram comedidos, com rápidas retiradas dos fones para comentários
de canto de boca. Necessitaram, porém, de uma longa parada para grave conversa
sobre a incômoda associação entre o fictício desgoverno dos astronautas no
espaço e a evidente impotência dos passageiros numa cabine do
avião... O filme,
afinal, não passava de estratosférica comédia de erros, cosmológico festival de
tropeços, e nem assim se sentiram cômodos: com gravidade ou não, nunca se sabe como
as coisas rolam quando não se está no comando... Nem mesmo quando supostamente se
está, admitiram, o que abriu campo para animado duelo entre a filosofia prática
de um e a prática filosófica do outro.
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Gravidade no voo |
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O Flamengo voando |
Algumas filas adiante, um pouco aflito pela falta de experiência
(já avisara a todos que era sua estreia), o agitado Rolé, sempre de radar
ligado nos movimentos alheios, captou, em poltrona vizinha, vagas referências,
na telinha, a lances de futebol... Pensou em notícias sobre a iminente abertura
da Copa do Mundo, que ia ser no dia seguinte, mas acabou encontrando um documentário,
que achou interessantíssimo, mesmo falado em espanhol: a história do Flamengo!... Afinal,
um bom estímulo para se manter no lugar, quieto e
sossegado, durante boa parte do voo.
Horas de viagem e Egberto continuava fascinado pela réstia
de planeta Terra que se desenrolava na janelinha. Na verdade, a qualquer altura
que subisse, cobertura de prédio, passeio de helicóptero, voo intercontinental,
imediatamente aflorava, no menino que continuava sendo, o viciado leitor de mapas.
Certamente estava nesse garoto a fonte original da melancolia que impregnava
Triz Tonho, seu personagem-palhaço. Dos oito aos quinze anos (e muitas vezes
depois) navegara sobre as amplas páginas dos detalhados Atlas que seus irmãos
mais velhos acumulavam na vida escolar, fora quaisquer outros mapas que lhe
apareciam. Com a ponta dos dedos seguia rios e estradas, ferrovias e litorais, comparava
tamanhos de cidades, níveis de relevo, profundidades de mares... Entendia até
as convenções, nos retângulos dos cantos das páginas, irritantes cortes nos
mapas, um mistério para o resto da garotada. Nas viagens com os irmãos,
motoristas profissionais, ou nos passeios de férias com os pais, só acreditava estar
onde estivesse se podia conferir o nome do lugar num mapa rodoviário, daqueles
cujas dobraduras desafiavam a habilidade de qualquer marmanjo, mas não a paciência
(e o carinho) dele...
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Meandros de sol na Amazônia |
Egberto queria mais que o mundo fosse um só. Pensando
assim, porém, nas nuvens, não sabia bem se esse desejo seria bom para o bem ou
para o mal...
PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:
Rolé
de Matos É lógico que não iam derrubar a igreja de Penha!... Se eu falei isso é porque
a situação no Complexo do Alemão, que parecia sob controle, já estava ficando
ruça naquela época, tanto é que agora virou uma crise braba. Esse esquema de
domínio militarizado do Estado jamais vai resolver o problema das favelas, a questão
social que está na base disso é muito mais importante do que a atuação do
tráfico. Que, aliás, também é um problema social... É dirigido pelos ricos, que
levam o grosso do lucro, é mantido pela classe média, que garante as vendas, e
é operado pelos pobres mais desprovidos de cultura, de conhecimento, de
oportunidade ou seja lá o que for que se precise para viver em sociedade. Os “funcionários”
do tráfego, em geral, não chegam nem à escola primária, só aprendem técnicas de
combate e de tortura, e são manipulados à distância pelos “investidores”. Em suma,
uma forma radical de capitalismo...
Gastão Cavalcanti Ah, qual é,
Rolé?... Vai botar a culpa, de novo, na classe média, no “consumidor”?...
Rolé
de Matos Não botei a culpa na classe média, releia aí... O mercado é regido pelos
lá de cima, os que transportam o grosso da droga de helicóptero ou até mesmo de
jatinho... Agora, que a classe média é parte da equação, lá isso é!
Elói de Holanda E também tem a questão
do “comércio internacional”, não esqueçam... A Colômbia mesmo, falando
genericamente, ainda tem boa parte da sua economia, queira ou não, dependente da
produção de drogas. Deviam incluir no PIB, que nem ingleses e italianos fizeram
com outras atividades “pouco legais”. A gente ficou sabendo o que rolava por lá.
Deviam fazer que nem o Mojica no Uruguai, legalizar tudo e regularizar o
mercado, que este já existe mesmo. Repetir o que está sendo tentado em relação
à guerrilha, ou seja, abrir negociações para incluir na sociedade, o que até cria
uma expectativa de salto econômico.
Eliete Barbosa É, dá pra entender
tudo isso. O difícil é controlar!... Estes processos econômicos radicalmente
capitalistas, ainda mais armados, são a maior barra pesada...
Leonil de Moura Tudo na vida é difícil
de controlar!... Ali mesmo, naquele voo, eu e o Gão entramos numa mini-paranoia,
assustados por aquele filme do tipo “o piloto sumiu”, e vcs até encarnaram quando
contamos. Mas, é verdade, não se tem o menor controle, em especial quando se é
passageiro. Agora mesmo todos viram o que é capaz de fazer um suicida obstinado:
enfiar seu avião (e mais 149 pessoas) Alpes suíços a dentro...
Gastão
Cavalcanti E também é difícil controlar a ganância alheia. Essa cicatriz aí do
Comperj na verdade é um buraco... Toda a grana roubada da Petrobras parece que entrou
num saco sem fundo, mais fundo que o pré-sal. Bem, reconheçamos, esse negócio
de sumirem com dinheiro no Brasil é uma espécie de esporte nacional, e não é de
hoje... O que já desapareceu de grana por meio de sonegação de impostos dava
para fundar um outro país em um paraíso fiscal qualquer, ou até mesmo comprar
um...
Berto Triz Tonho Pessoal, caíam na
real, não se aflijam: todos são passageiros de um veículo voador, este a que chamamos
Terra... A gente tem mais é que se esforçar para não antecipar a hora do
desembarque, tá certo, e apreciar a paisagem enquanto pode. Ou curtir os comes
e bebes, as histórias, o visual, o que for possível, sabendo que não tem saída.
Ou, em outro sentido, que a saída dessa viagem é obrigatória, cada um no seu
final...
Eliete Barbosa Ei, a comida era
igual para todo mundo, vcs também comeram aquele macarrão!... E até que estava bem
gostoso.
Russa
Pimentel Até parece que está todo mundo certo menos eu, que sou uma dondoca e que
só penso em cosméticos e em consumo!... Pô, a pessoa não pode relaxar um pouco,
não?... Horas ali dentro daquele voo, sem outra coisa pra fazer, será que não se
pode dar uma olhada nas novidades, mesmo que sejam produtos de maquiagem, que podem
ser úteis para muita gente?... Mas, não: tem sempre alguém que aposta no que é
feio, triste ou deprimente, que nem vcs aí, com esses comentários. É por isso que
esta trupe não vai pra frente...
Rolé
de Matos Falô!...
[Atualizado em 07/04/2015]
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