4/06/2015

02 – Sobre o Brasil

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Aos poucos, toda aquela agitação internacional (e também carioca) ia passando. Parecia mesmo que estava tudo certo: a Zás-Brás Elucubrações Artísticas embarcara inteirinha, nenhum de seus insuspeitos artistas fora impedido de acessar a área internacional do Galeão. Estavam agora na sala de espera do embarque, aquela espécie de limbo (ou purgatório) que o viajante encara antes de partir para o seu destino. No tempo que lhes sobrava, sem perceberem, foram aos poucos se agrupando à frente da grande vidraça que espia o pátio de manobras, os aviões e seus tratadores resfolegando na pista. Comentários escasseando, olhares parados, até que os sete, com leves grunhidos, chegaram ao morno de um silêncio: uma lamúria de despedida, um antecipar de saudades?...
Elói reativou o desconforto:
- Ei, aquela igrejinha lá do outro lado, em cima da pedra, cercada de favelas... Não é a igreja da Penha?...
Por consenso, evidente que sim. Era a mesma que se via da Linha Vermelha, "para quem presta atenção", Egberto cutucou. Quebrado o pequeno encanto, Gastão, até então parecendo perdido em um vago futuro, deu rápida marcha a ré:
- Puxa!... Na última vez em que prestei atenção nela, que eu me lembre (e até mostrei a um amigo que ia comigo à Europa), não havia nenhuma favela em volta...
Recebeu o espanto incrédulo de Raíssa:
- Cara, essa viagem deve ter sido há muito tempo!... Há mais de vinte anos que a expansão do Complexo do Alemão tomou conta da Penha!...
Concordância e lamentos gerais, até Rolé arrematar, quase gargalhando:
- Só espero que não roubem a igreja!... Quando a gente voltar, que ainda esteja no alto da Penha!...
Se viajantes necessitam da âncora das lembranças, esta poderia ser, para todos, a última imagem do Rio de Janeiro. Exceto para Egberto... Fanático por mapas, fazia questão de ficar, como sempre, na janelinha, e por isso viu muito mais. Com o avião partindo pela pista do sentido oeste-leste, o casario da Ilha do Governador à direita, seu olhar se dirigia para o sul. Uma lancha puxou o zíper da memória, rastro diagonal de espuma riscando a barriga da baía da Guanabara, aquela velha menina-moça inocentemente adornada de pendentes navios, no pescoço uma pragmática ponte de brilhantes carros, metida num tubinho emporcalhado que se afunilava no rumo do Atlântico, cercada de forçados implantes urbanos e ressentidos perfis de montanhas.

A vista da boca da baía da Guanabara

- Grandioso cenário, sem dúvida!... Duvidoso é o espetáculo que montamos...
Sim, o espaço urbano é sempre convalescente, o Rio de Janeiro que se cuide...
Indo o voo em direção à Região dos Lagos, Egberto viu, entre nuvens, a grande cicatriz da futura refinaria, o terreno debastado do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, o Comperj. Subindo, sua imaginação não cabia no voo... 

A cicatriz do Comperj


Num salto à frente, mergulhou em oleoso futuro: imaginou a onda negra que viria daquele mar que se distanciava, o banho de petróleo engolfando a cidade.
Indiferente, o avião mudava o rumo, as nuvens, em novelos de dúvidas, encobriam o futuro. Logo sobrevoavam outro mar, o de Minas. Para quem sai do Rio, noroeste é a direção do Panamá, na outra ponta de uma reta que passa por Brasília e Bogotá, atravessando na diagonal, com vislumbres de cidades e rios, o Cerrado, a Amazônia e os Andes. Quase todo o mapa real da América do Sul sob seus olhos e Egberto acompanhava cada milha.
Os outros, bem refrigerados, mas desentrosados e apertados, procuravam entender as regras do voo. O interlocutor imediato era a telinha, presa à poltrona da frente. Raíssa tratou de investigar as ofertas e promoções da própria companhia aérea, do turismo no Caribe aos produtos de maquiagem. Outras viagens ficavam para depois, aquela por enquanto bastava. Dos cosméticos, marcas novas a procuravam, produtos conhecidos multiplicavam formas. De qualquer modo, o mesmo resultado: buscava que a sua imagem não mudasse...
Refeição branca a bordo
Eliete e Elói, uma fileira atrás, confundiam as bagagens de mão. Desconfiados da neutralidade do bagageiro, traziam-nas de volta ao colo em intermináveis loopings, atribulação que só o aviso de “baixar bandejas”, porque o lanche se aproximava, conseguiu cessar. Rapidamente entulharam as bolsas, entre as pernas e entre os dois, e se dedicaram ao fusilli com molho branco e às duas taças (cada um) de vinho branco. Uma refeição toda branca, quase o bastante para deixá-los em paz... 
Gastão e Leonil, pela primeira vez juntos, trataram-se gentilmente: consultaram com a devida atenção o painel de atrações no minivídeo, negociaram educadamente as opções de programas e, com alguma gravidade, escolheram um filme ainda em cartaz no Rio, uma aventura espacial, Sem Gravidade. Assistiram comedidos, com rápidas retiradas dos fones para comentários de canto de boca. Necessitaram, porém, de uma longa parada para grave conversa sobre a incômoda associação entre o fictício desgoverno dos astronautas no espaço e a evidente impotência dos passageiros numa cabine do
Gravidade no voo
avião... O filme, afinal, não passava de estratosférica comédia de erros, cosmológico festival de tropeços, e nem assim se sentiram cômodos: com gravidade ou não, nunca se sabe como as coisas rolam quando não se está no comando... Nem mesmo quando supostamente se está, admitiram, o que abriu campo para animado duelo entre a filosofia prática de um e a prática filosófica do outro.
O Flamengo voando
Algumas filas adiante, um pouco aflito pela falta de experiência (já avisara a todos que era sua estreia), o agitado Rolé, sempre de radar ligado nos movimentos alheios, captou, em poltrona vizinha, vagas referências, na telinha, a lances de futebol... Pensou em notícias sobre a iminente abertura da Copa do Mundo, que ia ser no dia seguinte, mas acabou encontrando um documentário, que achou interessantíssimo, mesmo falado em espanhol: a história do Flamengo!... Afinal, um bom estímulo para se manter no lugar, quieto e sossegado, durante boa parte do voo.
Horas de viagem e Egberto continuava fascinado pela réstia de planeta Terra que se desenrolava na janelinha. Na verdade, a qualquer altura que subisse, cobertura de prédio, passeio de helicóptero, voo intercontinental, imediatamente aflorava, no menino que continuava sendo, o viciado leitor de mapas. Certamente estava nesse garoto a fonte original da melancolia que impregnava Triz Tonho, seu personagem-palhaço. Dos oito aos quinze anos (e muitas vezes depois) navegara sobre as amplas páginas dos detalhados Atlas que seus irmãos mais velhos acumulavam na vida escolar, fora quaisquer outros mapas que lhe apareciam. Com a ponta dos dedos seguia rios e estradas, ferrovias e litorais, comparava tamanhos de cidades, níveis de relevo, profundidades de mares... Entendia até as convenções, nos retângulos dos cantos das páginas, irritantes cortes nos mapas, um mistério para o resto da garotada. Nas viagens com os irmãos, motoristas profissionais, ou nos passeios de férias com os pais, só acreditava estar onde estivesse se podia conferir o nome do lugar num mapa rodoviário, daqueles cujas dobraduras desafiavam a habilidade de qualquer marmanjo, mas não a paciência (e o carinho) dele...




Meandros de sol na Amazônia
Quase em êxtase, como em todos os voos que fizera antes, via passarem os grandes rios da Amazônia, o sol iluminando meandros sobre o veludo verde das matas, um estirão de horas sobre a mesma paisagem. No mapa da telinha do assento do avião, na reta da Colômbia, sobrevoavam agora a Cabeça do Cachorro, uma das mais simbólicas marcas das fronteiras brasileiras, o canto mais noroeste do mapa do país, presença assegurada em documentários e informes militares. Lá embaixo, via-se o domínio absoluto do verde amazônico, a completa indeterminação dos territórios, a demonstração prática da vocação internacionalizante das divisões políticas do mundo.
Egberto queria mais que o mundo fosse um só. Pensando assim, porém, nas nuvens, não sabia bem se esse desejo seria bom para o bem ou para o mal...


PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:

Rolé de Matos É lógico que não iam derrubar a igreja de Penha!... Se eu falei isso é porque a situação no Complexo do Alemão, que parecia sob controle, já estava ficando ruça naquela época, tanto é que agora virou uma crise braba. Esse esquema de domínio militarizado do Estado jamais vai resolver o problema das favelas, a questão social que está na base disso é muito mais importante do que a atuação do tráfico. Que, aliás, também é um problema social... É dirigido pelos ricos, que levam o grosso do lucro, é mantido pela classe média, que garante as vendas, e é operado pelos pobres mais desprovidos de cultura, de conhecimento, de oportunidade ou seja lá o que for que se precise para viver em sociedade. Os “funcionários” do tráfego, em geral, não chegam nem à escola primária, só aprendem técnicas de combate e de tortura, e são manipulados à distância pelos “investidores”. Em suma, uma forma radical de capitalismo...

Gastão Cavalcanti Ah, qual é, Rolé?... Vai botar a culpa, de novo, na classe média, no “consumidor”?...


Rolé de Matos Não botei a culpa na classe média, releia aí... O mercado é regido pelos lá de cima, os que transportam o grosso da droga de helicóptero ou até mesmo de jatinho... Agora, que a classe média é parte da equação, lá isso é!

 Elói de Holanda E também tem a questão do “comércio internacional”, não esqueçam... A Colômbia mesmo, falando genericamente, ainda tem boa parte da sua economia, queira ou não, dependente da produção de drogas. Deviam incluir no PIB, que nem ingleses e italianos fizeram com outras atividades “pouco legais”. A gente ficou sabendo o que rolava por lá. Deviam fazer que nem o Mojica no Uruguai, legalizar tudo e regularizar o mercado, que este já existe mesmo. Repetir o que está sendo tentado em relação à guerrilha, ou seja, abrir negociações para incluir na sociedade, o que até cria uma expectativa de salto econômico.

Eliete Barbosa É, dá pra entender tudo isso. O difícil é controlar!... Estes processos econômicos radicalmente capitalistas, ainda mais armados, são a maior barra pesada...


Leonil de Moura Tudo na vida é difícil de controlar!... Ali mesmo, naquele voo, eu e o Gão entramos numa mini-paranoia, assustados por aquele filme do tipo “o piloto sumiu”, e vcs até encarnaram quando contamos. Mas, é verdade, não se tem o menor controle, em especial quando se é passageiro. Agora mesmo todos viram o que é capaz de fazer um suicida obstinado: enfiar seu avião (e mais 149 pessoas) Alpes suíços a dentro... 


Gastão Cavalcanti E também é difícil controlar a ganância alheia. Essa cicatriz aí do Comperj na verdade é um buraco... Toda a grana roubada da Petrobras parece que entrou num saco sem fundo, mais fundo que o pré-sal. Bem, reconheçamos, esse negócio de sumirem com dinheiro no Brasil é uma espécie de esporte nacional, e não é de hoje... O que já desapareceu de grana por meio de sonegação de impostos dava para fundar um outro país em um paraíso fiscal qualquer, ou até mesmo comprar um... 

Berto Triz Tonho Pessoal, caíam na real, não se aflijam: todos são passageiros de um veículo voador, este a que chamamos Terra... A gente tem mais é que se esforçar para não antecipar a hora do desembarque, tá certo, e apreciar a paisagem enquanto pode. Ou curtir os comes e bebes, as histórias, o visual, o que for possível, sabendo que não tem saída. Ou, em outro sentido, que a saída dessa viagem é obrigatória, cada um no seu final...

Eliete Barbosa Ei, a comida era igual para todo mundo, vcs também comeram aquele macarrão!... E até que estava bem gostoso.


Russa Pimentel Até parece que está todo mundo certo menos eu, que sou uma dondoca e que só penso em cosméticos e em consumo!... Pô, a pessoa não pode relaxar um pouco, não?... Horas ali dentro daquele voo, sem outra coisa pra fazer, será que não se pode dar uma olhada nas novidades, mesmo que sejam produtos de maquiagem, que podem ser úteis para muita gente?... Mas, não: tem sempre alguém que aposta no que é feio, triste ou deprimente, que nem vcs aí, com esses comentários. É por isso que esta trupe não vai pra frente...

Rolé de Matos Falô!...




[Atualizado em 07/04/2015]

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