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No portão de embarque, tumulto... Na
origem da confusão, a neblina matinal da Bogotá andina, que atrasara uma
sucessão de voos. Os sete empacaram, desorientados. Do que se aproveitou Leonil
para dar outro bote agoniado sobre Egberto:
- Atrasou demais, Berto!... Assim não vai dar pra assistir ao
jogo do Brasil, e muito menos à abertura da Copa!...
- Calma, Leo... Dá tempo, sim, de ver o jogo...
- E isso se a TV cubana transmitir...
- Relaxa... Pega aqui a minha câmera, dá uma olhada nas
fotos que fiz dos vulcões.
Nesse momento, embarcaram, arrastados pelos funcionários (que
nessas horas a experiência se transforma em insuspeitada agilidade), passaportes
e passagens aceleradamente conferidos. Perdida a hora da conexão no Panamá, a
empresa aérea, por conta própria, remarcou as passagens, entupindo de
desorientados o próximo voo para Havana. Tíquetes indicando os assentos lhe
foram enfiados nas mãos e logo, quase sem pensar, estavam no bojo do avião, ocupando
os lugares vagos das reservas originais, perfeita mistura dos dois voos. No
aleatório sorteio das cadeiras, a trupe se espalhou, deixaram de aproveitar boa
oportunidade de pesquisar personagens, a troca de impressões sobre os demais
passageiros...
Naturalmente,
a viagem foi um pouco apertada. Gastão
ficou na altura das asas, do lado
esquerdo; Raíssa e Egberto,
quatro filas atrás, cada um de um lado do corredor; Leonil, na fila seguinte,
à direita, cadeira do meio; Eliete, Elói e Rolé espalhados ao fundo. Na enxurrada seguinte, entraram os passageiros
originais do voo, com evidente predominância de cubanos, e quase todos entupidos
de enormes (e muitas) sacolas, bolsas e embrulhos. Tudo rápido e confuso, dois
aviões entulhados em um só.
Para seu horror, Gastão recebeu o desconforto de um grandalhão,
a seu lado e por sobre a cabeça, quando tentou enfiar no bagageiro (e conseguiu!)
uma indisfarçável televisão de tela plana. Para Elói, de longe, a cena da TV entupida no bagageiro lhe pareceu chocante, e não tanto pela mecânica do ato em si, muito mais pela
possibilidade de que fizessem compras no Panamá...
-
O Panamá, para os cubanos, deve ser o que Miami é para os brasileiros...
Feliz, o monstro ainda alardeava o feito em altos brados, recebendo
entusiástico apoio de um senhor de meia idade que neste momento se esforçava para ocupar a janela ao lado de Leonil, um típico
espanhol que se demonstrou também cubano. Os
dois, num castelhano de altíssima
velocidade, falavam (e se divertiam) literalmente por cima dos passageiros e da
balbúrdia que imperava na aeronave, e eram apenas dois, entre os muitos e animados
comerciantes cubanos que dominaram o avião.
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O cubano ao lado |
No que os comissários de bordo
completaram a conferência de que as poltronas estavam em posição vertical e as
mesinhas fechadas, Leonil, recolhendo o espanto, dispôs-se a um aquietante sono
de algumas milhas. Sair às quatro da manhã do hotel de Bogotá, trocar de avião
no Panamá e embarcar para Havana quase sem pensar dá sono em qualquer um... Assim
que o vizinho, felizmente, fechou a janela, dormiu profundo, mesmo chacoalhado
pelas pinicadas da lã do paletó. Acordou, ainda (e sempre) entre o sonho e a mais
febril imaginação, quando o vizinho, em gesto brusco, levantou a cortininha de plástico
da janela. Susto luminoso que lhe invadiu a cara e atingiu vários outros
passageiros. Cerrando pálpebras, olhou para baixo e através do contraluz do
vizinho, encarou o descarado mar azul do Caribe.
“O mundo continua um bom cenário!... O que a gente faz nele é que é uma droga de teatro!...”, pensou, em prudente silêncio, sem saber o quanto, com isto, se associava à percepção do mundo de seu velho amigo (às vezes chefe, às vezes mala) Berto Triz Tonho. Acordara entre insatisfeito e chateado, mais pelo efeito do paletó de lã, o desconforto de suas mangas volumosas e o calor que provocava, do que por falta de sono.
“O mundo continua um bom cenário!... O que a gente faz nele é que é uma droga de teatro!...”, pensou, em prudente silêncio, sem saber o quanto, com isto, se associava à percepção do mundo de seu velho amigo (às vezes chefe, às vezes mala) Berto Triz Tonho. Acordara entre insatisfeito e chateado, mais pelo efeito do paletó de lã, o desconforto de suas mangas volumosas e o calor que provocava, do que por falta de sono.
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Paletó na mão |
Não listava “acordar cedo” entre os seus maiores prazeres,
mas, sabia: viagem não tem jeito, degringola qualquer costume... No geral,
levava bem, dispunha-se a saltar da cama no que o despertador (agora, o
celular) tocasse. Sabia, porém, que ainda pela manhã voltaria o sono a
alcançá-lo, e todos (ele, o sono, os compromissos...) precisariam negociar. Quando
necessitava demais do dia, afogava em café o sono mais persistente, e seguia em
frente. Quando valia tudo para ficar ligado, esparramava, ao menos, água na
cara. E sendo o momento meio morto, como no tempo obrigatório dos transportes,
gostava de aceitar a ordem do corpo e simplesmente dormir.
No que Leonil acordava e lhe retornava um pouco de
objetividade, crescia a desconfortável sensação de que, naquela excursão, nada
do que fizessem daria certo... Sentiu como se, ele mesmo, estivesse a caminho
do matadouro, boi consciente de seu fatiado futuro, mas, responsável, cumprindo
compromissos. Desconfortável isso, e estava difícil também ficar à vontade
naquele voo... Coubera-lhe, na poltrona ao lado, aquele sujeito agitado, meio
assustado, muito branco, forte e atarracado, agora quieto, que exagerara na
conversa com o parceiro de quatro fileiras à frente, durante a arrumação das compras
que fizeram no Panamá, talvez seu chefe ou sócio mandão.
Leonil, que dormira bastante, quase uma hora, perdera o
sono, reavivado talvez pela curiosidade, não tanto sobre cubano a seu lado. Lembrou-se
da câmera de Egberto no bolso do paletó, as fotos dos vulcões. No que a ligava,
deu uma espiadinha por sobre o ombro do vizinho e confirmou que sobrevoavam o
mar, o que não lhe dizia muito... Pois, eis que surge na janelinha uma das
poucas referências de chão firme em meio ao amplo mar interior do Caribe, a
principal das ilhas Cayman, famoso e concorrido paraíso fiscal, e se espantou por completo: em vez do verde dos dólares, uma joia turquesa sobre
cetim profundamente azul!
- Olha, que lindo!...
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Ilha Cayman |
Leonil sacou rápido da câmera e bateu a foto, a única. E num
rompante de entusiasmo quase juvenil cutucou o cubano desligado, que, custando
a entender, o encarou por tanto tempo que perdeu por completo a chance de ver. E
nem demonstrou muito interesse, mas agora Leonil se interessava por ele.
Chamava-se Leonardo e vivia em Matanzas, a uns 100 km da capital, a caminho de
Varadero. Seu negócio era um pequeno restaurante, bem perto da principal igreja
da cidade. E logo Leonardo oferecia serviços, os seus, se passassem por lá, que
a comida era muito boa, e também o do irmão, morador de Havana, dono de um
táxi:
- Chama-se Fernando, mas é conhecido como El Gato. Desde
pequeno é chamado assim, e parece mesmo um gato... Mas, pode confiar nele. Por
exemplo, se quiserem ir a Varadero... Ele pega vocês no hotel e em menos de
duas horas estão lá. E no dia seguinte vai buscar, é só combinar a hora.
- El Gato?... Leonil fez questão de demonstrar interesse,
foi fácil guardar o nome na memória. Anotou o telefone no canhoto do cartão de
embarque e continuou ouvindo o pequeno empresário cubano, evidentemente
desejoso de lhe mostrar que Cuba era um belo país, onde se vivia bastante bem. A conversa descia animada
no rumo de Havana até o piloto mandar apertar os cintos. Neste momento, o Leo
cubano aproximou-se do Leo brasileiro, seu novo amigo que talvez nunca mais
visse, e demonstrou que pretendia lhe dar, certamente, pelo tom sombrio e o volume
baixo da voz, a sua dica final, a mais importante, e disse:
- Cuidado com os negros.
- Hem?
- Não confie em nenhum negro. Se um negro
lhe oferecer alguma coisa, cuidado!... Eles são ardilosos. Não dá para confiar
neles. Roubam...
Leonil, dada a seriedade do alerta,
balançou por duas vezes a cabeça, gravemente. Leonardo, confirmando que lhe fora
útil, nada mais disse. Alteou um pouco o rosto, desviou o olhar para a
janelinha. Não trocaram mais palavras.
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Plantações perto de Havana |
Lá em baixo, passavam campos
perfeitamente retalhados, com, a cada trecho, pequenas aglomerações de casas,
estufas e galpões, sempre um pequeno prédio ao centro.
A cidade de Havana rapidamente os
envolvia, até pousarem no aeroporto José Martí. Taxiavam e, enquanto o atento Leonil
reparava na predominância dos aviões da TAAG, as Linhas Aéreas de Angola, e nos
russos da Cubana de Aviación, o apressado Leonardo já lhe pedia passagem, que o
impositivo parceiro da TV no bagageiro, com voz de trovão (para irritação de
Gastão) exigia a sua ajuda.
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PaCuCoBras [grupo
fechado] – Comentários:
Leonil de Moura O cara me surprendeu, com aquele conselho racista... Engraçado é que nem notou que eu não sou tão branco assim. Até gostei da sinceridade, confiou em mim. No Brasil, só de vez em quando aparece um branco com coragem de dizer isso, assim, na cara. Em compensação, são capazes de matar e esfolar com a maior naturalidade.
Russa Pimentel Ah, a mim não surpreendeu, não!... Havia naquele camarada, que parecia tão bonzinho, como há em muitos outros por aqui, camadas e camadas de colonialismo... Por mais que a Revolução, ou até mesmo a pobreza ou a riqueza, igualem pretos e brancos, e demais matizes, custa entrar nessas cacholas rústicas e presunçosas a percepção de que os homens brancos não passam de descendentes de homens pretos que a evolução humana, por falta de sol na Europa, tratou de embranquecer...
Berto Triz Tonho Puxa,
foi bom vc não ter falado isso na cara dele!... A gente não podia começar nossa
excursão por Cuba criando uma crise diplomática com os pequenos comerciantes locais...
Gastão Cavalcanti O
que me surpreendeu foi o outro entupir no bagageiro aquela televisão enorme... Pombas,
bem em cima da minha cabeça!... Pensei que ia levar com ela na testa...
Rolé de Matos Ah, que nada... Mesmo de longe,
percebi logo que cabia. O que me espantou mesmo foi ver os cubanos indo às
compras no Panamá, e isso quando muita gente ainda achava que eles eram proibidos
de sair do país... Bem, eu sabia que não era o caso, mas não imaginava que andavam
fazendo compras no exterior, assim que nem os brasileiros, os pobres no
Paraguai, os de classe média nos EUA, os ricos na Europa...
Eliete Barbosa Sabe
duma?... Se não fosse o bloqueio, os cubanos estariam fazendo compras em Miami,
isso sim!... Desde que pudessem vender lá o seu artesanato, a sua música, até mesmo
a sua sabedoria de vida, que eles são escolados. Quer dizer, isto se os cubanos
de Miami deixassem...
Berto Triz Tonho Pois
eu estava tão irritado com a chateação de esperar o desembarque daquela tralha toda,
com o nosso grupo amontoado no fundo do corredor enquanto eles carregavam nos
ombros os pacotes e as malas, que não senti que houvesse espaço para
considerações político-econômicas, muito menos étnico-raciais.

Russa Pimentel Aposto
que, apesar do cabelo liso, ele também tem pentelhos crespos, que nem praticamente
todo mundo. Pentelhos deixaram de se tornarem lisos porque ficam quase o tempo
todo escondidos, pelo frio ou pelos modos. Cabelo liso esquenta, é bom para resistir
ao frio da Europa. Já o cabelo crespo refresca a cuca, forma uma camada de ar, um
refrigério no verão. Pode estar certo de que fazia o maior sucesso lá na África
equatorial há milhares de anos atrás...
Gastão Cavalcanti Eu, hem, Raíssa!... Não fazia a
menor ideia de que vc andava metida até a raiz dos pentelhos em teorias
evolutivas... Dessa vez, foi fundo!
Elói de Holanda Raízes,
meus caros, raízes!... Nas raízes, ninguém se difere, nem pela cor, nem pelo
nome. E quando nasce ninguém é racista. Adoro aquelas fotos, que rolam na
internet, de crianças pretas e crianças brancas brincando na maior
naturalidade... Pena que minha alegria dura pouco: imediatamente lembro da capa
do LP do Milton Nascimento, os dois garotos, preto e branco, agachados, conversando,
e da música em que brincam juntos até que o branco vai para a cidade, e quando volta,
já crescidos, um é o dono e o outro só trabalha...


Leonil de Moura Na
verdade, eu estava mais interessado era naquela TV grandona. Cheguei a pensar
em surrupiar do grandão cubano, não queria perder a abertura da Copa por nada!...
E nem tinha certeza se iam transmitir para lá...
Rolé de Matos Tu
é muito otário!... Pra quê que o cara ia trazer aquele trambolho do Panamá, se em
Cuba não tivesse canais de TV para assistir?...
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