4/22/2015

06 - Espantos no Caribe

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         No portão de embarque, tumulto... Na origem da confusão, a neblina matinal da Bogotá andina, que atrasara uma sucessão de voos. Os sete empacaram, desorientados. Do que se aproveitou Leonil para dar outro bote agoniado sobre Egberto:
- Atrasou demais, Berto!... Assim não vai dar pra assistir ao jogo do Brasil, e muito menos à abertura da Copa!...
- Calma, Leo... Dá tempo, sim, de ver o jogo...
- E isso se a TV cubana transmitir...
- Relaxa... Pega aqui a minha câmera, dá uma olhada nas fotos que fiz dos vulcões.
Nesse momento, embarcaram, arrastados pelos funcionários (que nessas horas a experiência se transforma em insuspeitada agilidade), passaportes e passagens aceleradamente conferidos. Perdida a hora da conexão no Panamá, a empresa aérea, por conta própria, remarcou as passagens, entupindo de desorientados o próximo voo para Havana. Tíquetes indicando os assentos lhe foram enfiados nas mãos e logo, quase sem pensar, estavam no bojo do avião, ocupando os lugares vagos das reservas originais, perfeita mistura dos dois voos. No aleatório sorteio das cadeiras, a trupe se espalhou, deixaram de aproveitar boa oportunidade de pesquisar personagens, a troca de impressões sobre os demais passageiros...
Naturalmente, a viagem foi um pouco apertada. Gastão ficou na altura das asas, do lado esquerdo; Raíssa e Egberto, quatro filas atrás, cada um de um lado do corredor; Leonil, na fila seguinte, à direita, cadeira do meio; Eliete, Elói e Rolé espalhados ao fundo. Na enxurrada seguinte, entraram os passageiros originais do voo, com evidente predominância de cubanos, e quase todos entupidos de enormes (e muitas) sacolas, bolsas e embrulhos. Tudo rápido e confuso, dois aviões entulhados em um só.
Para seu horror, Gastão recebeu o desconforto de um grandalhão, a seu lado e por sobre a cabeça, quando tentou enfiar no bagageiro (e conseguiu!) uma indisfarçável televisão de tela plana. Para Elói, de longe, a cena da TV entupida no bagageiro lhe pareceu chocante, e não tanto pela mecânica do ato em si, muito mais pela possibilidade de que fizessem compras no Panamá...
- O Panamá, para os cubanos, deve ser o que Miami é para os brasileiros...
Feliz, o monstro ainda alardeava o feito em altos brados, recebendo entusiástico apoio de um senhor de meia idade que neste momento se esforçava para ocupar a janela ao lado de Leonil, um típico espanhol que se demonstrou também cubano. Os dois, num castelhano de altíssima velocidade, falavam (e se divertiam) literalmente por cima dos passageiros e da balbúrdia que imperava na aeronave, e eram apenas dois, entre os muitos e animados comerciantes cubanos que dominaram o avião.
O cubano ao lado

No que os comissários de bordo completaram a conferência de que as poltronas estavam em posição vertical e as mesinhas fechadas, Leonil, recolhendo o espanto, dispôs-se a um aquietante sono de algumas milhas. Sair às quatro da manhã do hotel de Bogotá, trocar de avião no Panamá e embarcar para Havana quase sem pensar dá sono em qualquer um... Assim que o vizinho, felizmente, fechou a janela, dormiu profundo, mesmo chacoalhado pelas pinicadas da lã do paletó. Acordou, ainda (e sempre) entre o sonho e a mais febril imaginação, quando o vizinho, em gesto brusco, levantou a cortininha de plástico da janela. Susto luminoso que lhe invadiu a cara e atingiu vários outros passageiros. Cerrando pálpebras, olhou para baixo e através do contraluz do vizinho, encarou o descarado mar azul do Caribe. 
“O mundo continua um bom cenário!... O que a gente faz nele é que é uma droga de teatro!...”, pensou, em prudente silêncio, sem saber o quanto, com isto, se associava à percepção do mundo de seu velho amigo (às vezes chefe, às vezes mala) Berto Triz Tonho. Acordara entre insatisfeito e chateado, mais pelo efeito do paletó de lã, o desconforto de suas mangas volumosas e o calor que provocava, do que por falta de sono.
Paletó na mão

Não listava “acordar cedo” entre os seus maiores prazeres, mas, sabia: viagem não tem jeito, degringola qualquer costume... No geral, levava bem, dispunha-se a saltar da cama no que o despertador (agora, o celular) tocasse. Sabia, porém, que ainda pela manhã voltaria o sono a alcançá-lo, e todos (ele, o sono, os compromissos...) precisariam negociar. Quando necessitava demais do dia, afogava em café o sono mais persistente, e seguia em frente. Quando valia tudo para ficar ligado, esparramava, ao menos, água na cara. E sendo o momento meio morto, como no tempo obrigatório dos transportes, gostava de aceitar a ordem do corpo e simplesmente dormir.
No que Leonil acordava e lhe retornava um pouco de objetividade, crescia a desconfortável sensação de que, naquela excursão, nada do que fizessem daria certo... Sentiu como se, ele mesmo, estivesse a caminho do matadouro, boi consciente de seu fatiado futuro, mas, responsável, cumprindo compromissos. Desconfortável isso, e estava difícil também ficar à vontade naquele voo... Coubera-lhe, na poltrona ao lado, aquele sujeito agitado, meio assustado, muito branco, forte e atarracado, agora quieto, que exagerara na conversa com o parceiro de quatro fileiras à frente, durante a arrumação das compras que fizeram no Panamá, talvez seu chefe ou sócio mandão.
Leonil, que dormira bastante, quase uma hora, perdera o sono, reavivado talvez pela curiosidade, não tanto sobre cubano a seu lado. Lembrou-se da câmera de Egberto no bolso do paletó, as fotos dos vulcões. No que a ligava, deu uma espiadinha por sobre o ombro do vizinho e confirmou que sobrevoavam o mar, o que não lhe dizia muito... Pois, eis que surge na janelinha uma das poucas referências de chão firme em meio ao amplo mar interior do Caribe, a principal das ilhas Cayman, famoso e concorrido paraíso fiscal, e se espantou por completo: em vez do verde dos dólares, uma joia turquesa sobre cetim profundamente azul!
- Olha, que lindo!...
Ilha Cayman 

Leonil sacou rápido da câmera e bateu a foto, a única. E num rompante de entusiasmo quase juvenil cutucou o cubano desligado, que, custando a entender, o encarou por tanto tempo que perdeu por completo a chance de ver. E nem demonstrou muito interesse, mas agora Leonil se interessava por ele. Chamava-se Leonardo e vivia em Matanzas, a uns 100 km da capital, a caminho de Varadero. Seu negócio era um pequeno restaurante, bem perto da principal igreja da cidade. E logo Leonardo oferecia serviços, os seus, se passassem por lá, que a comida era muito boa, e também o do irmão, morador de Havana, dono de um táxi:
- Chama-se Fernando, mas é conhecido como El Gato. Desde pequeno é chamado assim, e parece mesmo um gato... Mas, pode confiar nele. Por exemplo, se quiserem ir a Varadero... Ele pega vocês no hotel e em menos de duas horas estão lá. E no dia seguinte vai buscar, é só combinar a hora.
- El Gato?... Leonil fez questão de demonstrar interesse, foi fácil guardar o nome na memória. Anotou o telefone no canhoto do cartão de embarque e continuou ouvindo o pequeno empresário cubano, evidentemente desejoso de lhe mostrar que Cuba era um belo país, onde se vivia bastante bem. A conversa descia animada no rumo de Havana até o piloto mandar apertar os cintos. Neste momento, o Leo cubano aproximou-se do Leo brasileiro, seu novo amigo que talvez nunca mais visse, e demonstrou que pretendia lhe dar, certamente, pelo tom sombrio e o volume baixo da voz, a sua dica final, a mais importante, e disse:
- Cuidado com os negros.
- Hem?
- Não confie em nenhum negro. Se um negro lhe oferecer alguma coisa, cuidado!... Eles são ardilosos. Não dá para confiar neles. Roubam...
Leonil, dada a seriedade do alerta, balançou por duas vezes a cabeça, gravemente. Leonardo, confirmando que lhe fora útil, nada mais disse. Alteou um pouco o rosto, desviou o olhar para a janelinha. Não trocaram mais palavras. 

Plantações perto de Havana
Lá em baixo, passavam campos perfeitamente retalhados, com, a cada trecho, pequenas aglomerações de casas, estufas e galpões, sempre um pequeno prédio ao centro.
A cidade de Havana rapidamente os envolvia, até pousarem no aeroporto José Martí. Taxiavam e, enquanto o atento Leonil reparava na predominância dos aviões da TAAG, as Linhas Aéreas de Angola, e nos russos da Cubana de Aviación, o apressado Leonardo já lhe pedia passagem, que o impositivo parceiro da TV no bagageiro, com voz de trovão (para irritação de Gastão) exigia a sua ajuda.

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PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:


 Leonil de Moura  O cara me surprendeu, com aquele conselho racista... Engraçado é que nem notou que eu não sou tão branco assim. Até gostei da sinceridade, confiou em mim. No Brasil, só de vez em quando aparece um branco com coragem de dizer isso, assim, na cara. Em compensação, são capazes de matar e esfolar com a maior naturalidade.


 Russa Pimentel  Ah, a mim não surpreendeu, não!... Havia naquele camarada, que parecia tão bonzinho, como há em muitos outros por aqui, camadas e camadas de colonialismo... Por mais que a Revolução, ou até mesmo a pobreza ou a riqueza, igualem pretos e brancos, e demais matizes, custa entrar nessas cacholas rústicas e presunçosas a percepção de que os homens brancos não passam de descendentes de homens pretos que a evolução humana, por falta de sol na Europa, tratou de embranquecer...

 Berto Triz Tonho  Puxa, foi bom vc não ter falado isso na cara dele!... A gente não podia começar nossa excursão por Cuba criando uma crise diplomática com os pequenos comerciantes locais...

 Gastão Cavalcanti  O que me surpreendeu foi o outro entupir no bagageiro aquela televisão enorme... Pombas, bem em cima da minha cabeça!... Pensei que ia levar com ela na testa...

 Rolé de Matos Ah, que nada... Mesmo de longe, percebi logo que cabia. O que me espantou mesmo foi ver os cubanos indo às compras no Panamá, e isso quando muita gente ainda achava que eles eram proibidos de sair do país... Bem, eu sabia que não era o caso, mas não imaginava que andavam fazendo compras no exterior, assim que nem os brasileiros, os pobres no Paraguai, os de classe média nos EUA, os ricos na Europa...

 Eliete Barbosa Sabe duma?... Se não fosse o bloqueio, os cubanos estariam fazendo compras em Miami, isso sim!... Desde que pudessem vender lá o seu artesanato, a sua música, até mesmo a sua sabedoria de vida, que eles são escolados. Quer dizer, isto se os cubanos de Miami deixassem...

 Berto Triz Tonho  Pois eu estava tão irritado com a chateação de esperar o desembarque daquela tralha toda, com o nosso grupo amontoado no fundo do corredor enquanto eles carregavam nos ombros os pacotes e as malas, que não senti que houvesse espaço para considerações político-econômicas, muito menos étnico-raciais.

 Russa Pimentel  Aposto que, apesar do cabelo liso, ele também tem pentelhos crespos, que nem praticamente todo mundo. Pentelhos deixaram de se tornarem lisos porque ficam quase o tempo todo escondidos, pelo frio ou pelos modos. Cabelo liso esquenta, é bom para resistir ao frio da Europa. Já o cabelo crespo refresca a cuca, forma uma camada de ar, um refrigério no verão. Pode estar certo de que fazia o maior sucesso lá na África equatorial há milhares de anos atrás...

 Gastão Cavalcanti Eu, hem, Raíssa!... Não fazia a menor ideia de que vc andava metida até a raiz dos pentelhos em teorias evolutivas... Dessa vez, foi fundo!

 Elói de Holanda  Raízes, meus caros, raízes!... Nas raízes, ninguém se difere, nem pela cor, nem pelo nome. E quando nasce ninguém é racista. Adoro aquelas fotos, que rolam na internet, de crianças pretas e crianças brancas brincando na maior naturalidade... Pena que minha alegria dura pouco: imediatamente lembro da capa do LP do Milton Nascimento, os dois garotos, preto e branco, agachados, conversando, e da música em que brincam juntos até que o branco vai para a cidade, e quando volta, já crescidos, um é o dono e o outro só trabalha...

 Leonil de Moura  Na verdade, eu estava mais interessado era naquela TV grandona. Cheguei a pensar em surrupiar do grandão cubano, não queria perder a abertura da Copa por nada!... E nem tinha certeza se iam transmitir para lá...

 Rolé de Matos  Tu é muito otário!... Pra quê que o cara ia trazer aquele trambolho do Panamá, se em Cuba não tivesse canais de TV para assistir?...


 Leonil de Moura  Tudo bem, eu sabia que tinha TV. Mas, sei lá, podia ser que eles só assistissem jogos de beisebol...

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