4/29/2015

07 - Adentrando Cuba

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A incerteza é um fértil campo para o esforço criativo: desgasta, mas estimula. E se nem toda previsão dá certo (hei, não comentem isto com os meteorologistas!), a ilusão do sucesso é muito útil: por muito mais tempo mantém a paciência do impaciente... Já chegando a Cuba, a maioria dos (meio que) circunstanciais membros da trupe estava tranquila: para quem passeia, qualquer caminho é divertido.
Além de Leonil, também Egberto se preocupava (e talvez muito mais) com os resultados da excursão. Sua premonição sobre um possível insucesso podia ser verdadeira e as coisas, ao final, realmente não darem certo, mas até então estava indo bem esta primeira, e não fazia idéia de quando haveria outra, excursão internacional da Zas-Brás Elucubrações Artísticas. O que realmente incomodava Egberto, e tentava não pensar nisso, era o risco de tornar-se um causador de crises. Ou, pior (e, em pleno ar condicionado do avião, se arrepiava todo) ser o causador d’A Crise...
É claro que Leonil tinha razão: recebera total garantia, do próprio Egberto, de que assistiria pela TV a cada um dos jogos da Copa do Mundo, independente da estranheza do lugar ou da esquisitice da situação. Todo artista tem suas exigências, de camarim ou de cama, desde rosas brancas até cocaína da boa, entre as que podem ser citadas sem susto, e assistir à Copa pela TV era uma fissura bastante razoável... O próprio Egberto, por mais que considerasse a maioria dos garotos que atualmente vestiam a amarelinha completamente dispensáveis (“Estão muito longe dos craques do meu tempo, falta-lhes aquela categoria!”) e odiasse o Felipão, não queria perder os jogos da seleção.
Faltavam algumas horas para a estreia do Brasil na Copa, o jogo inicial, contra a Croácia, e todo mundo (aliás, o mundo todo!) estava ligado no Itaquerão, aquele estádio (epa!, corrigindo, aquela arena) repentinamente construído(a) em São Paulo e entregue, de campo aberto, ao Corinthians. Todo mundo nessa, e eles ali, encruados pelo atraso na chegada a Cuba, por razões praticamente surrealistas: uma neblina matinal colombiana muito preguiçosa e um engarrafamento aéreo de cubanos muito consumistas... 
Bagagens dos cubanos
No que Egberto ia achando a situação difícil, uma relativa felicidade se apossou dele: o próprio Leonil acabou contribuindo para o atraso geral!... Sim, é certo, pode ter havido excesso de zelo da segurança cubana, com a sua experiência em perceber (e evitar) infiltrações no país, mas o fato é que Leonil fizera (teve que admitir!) a compra errada: naquela bolsinha de esconder dinheiro (que camuflava na cintura, logo abaixo da cueca, como tantos viajantes) jamais deveriam ter costurado um zíper metálico!... Ou que o fizessem, ok, mas não que ele, ou qualquer outro que se acredite previdente, comprasse e usasse a peça: todos sabem que os sensíveis aparelhos de detecção dos aeroportos não têm a menor condescendência com desavisados que viajam por aí dando este tipo de bobeira...
Agentes de imigração até podem ser benevolentes, compreensivos ou mesmo preguiçosos, e já tivera sorte em Bogotá, mas, quando o país é desconfiado ou os chefes estão de olho, é óbvio que alguma coisa metálica na cintura do sujeito não tem a menor chance de passar... No que o detector de metais chiou na sua mão, o policial de fronteiras cubano deu um pulo para trás. Leonil abriu seu melhor sorriso e, com ele, a braguilha, tentando mostrar o óbvio: o causador do barulho era o puxador do fecho-éclair, e apenas o gancho, que o trilho do zíper era de plástico, e inclusive só havia dinheiro em notas na bolsa, nada de moedas...

De bandeja na alfândega
Não adiantou. Leis são leis, segurança é segurança, e paranóias (e perigos) existem... Sob o olhar de toda a equipe da alfândega e de muitos passageiros (enquanto o resto da trupe se descolava e saía), o agente exigiu a apresentação pública do tal objeto metálico que acionara o alarme. O aflito Leonil precisou descascar várias camadas, uma operação corporal complexa (muito mais para strip-tease do que para terrorismo), para colocar em cima de uma mesa todas as coisas que amontoara na mão, recuperadas da bandeja do aparelho de raios-X (passaporte, câmera, carteiras, moedas, cinto...), e ainda o paletó de lã, que teve que tirar (e até foi bom, estava suando...), e depois levantar a camisa, abaixar as calças e esticar o elástico da bolsinha, tudo isso para poder retirá-la pela cabeça e mostrar, finalmente, a suspeitosa peça metálica ao zeloso guardião. O agente fez cara de enfado, meio decepcionado, e, tudo bem, aceitou as explicações.
Sem a menor preocupação com a elegância, Leonil tratou de agilizar a reconstituição da imagem. Enquanto se (re)vestia, ainda precisou, como todos, parar em dois outros fiscais, para entregar o formulário de entrada no país e o tíquete da bagagem, até que, finalmente, pode respirar o ar oficial de Cuba, livre (ele achava) daquela confusão... Sua cabeça, porém, estava no Brasil: faltava pouco para o jogo inicial da Copa, devia estar perdendo o (com certeza!) imperdível show de abertura.
Em rápida olhada, conferiu o aeroporto: nada de televisões, só painéis de informação. Mas, para quem queria chegar rápido ao hotel, havia boa oferta de táxis! Não foi tão rápido porque Eliete, com preocupações históricas e afetivas, fez questão da foto de grupo: tratava-se da primeira excursão internacional da Zás-Brás!... Para adiantar o serviço (que acabou prejudicado), Egberto pediu de volta sua maquininha prateada, a de lente arranhada.
Leonil até se esqueceu da aflição:
- Você tem que ver a foto da ilha Cayman, que fiz! 
E meteu a mão no bolso do paletó para sacar a câmera e mostrar a arte.
- Ei, cadê a máquina?... Caraca!... Acho que deixei lá na aduana...
Não pensou duas vezes, não ouviu ninguém... Deu meia volta, direto para a funcionária sentada ao lado do último portão, a que recolhia o tíquete da bagagem:
- Preciso voltar lá na alfândega, esqueci a máquina fotográfica!
Para sua surpresa, a morena não chamou o supervisor, nem duvidou do motivo: com um gesto leve de mão, liberou passagem. O mesmo fez o senhor da parada seguinte, o que recolhia os formulários da imigração. Fazendo a curva, Leonil retornou à penumbra do conjunto de máquinas de raios-x. Diante dele, espantados com aquela inversão do roteiro, um bando de fiscais. Sentindo necessidade de ser preciso, Leonil olhou o grupo inteiro e, talvez lembrando a dica do seu xará no avião, escolheu o cara que parecia ser o chefe, o rapazola mais empertigado (e branco) que viu. Partiu para cima dele e explicou o problema. O jovem oficial da alfândega, em voz alta, perguntou geral pela câmera, e já Leonil partia para o funcionário que o revistara. Antes de qualquer resposta, uma funcionária ao fundo levantou o braço e perguntou:
- É esta?
Era. E Leonil mostrou-se tão feliz (que ali estava muito da memória recente da Zás-Brás, inclusive da própria viagem), e abriu os braços de forma tão teatral, e foi tão sorridente nos agradecimentos que quase saiu aplaudido pelos agentes... Voltou sob olhares gerais, atendendo à curiosidade de outros fiscais, até que, com a câmera pendurada na ponta dos dedos, adentrou, pela segunda vez, à ilha de Cuba. Encontrou uma triunfal recepção de seu solidário grupo, só um pouco descompensada pela irritação de Egberto...
- Ainda bem!... Pensei que já ia começar a sambar em Cuba!...
Gastão tratou de aliviar:
- Ei, vamos nessa, pessoal?... Já arrumei um táxi grande, uma espécie de caminhonete chinesa, cabe todo mundo. Aí, Leo, acelera!... Tá faltando pouco mais de meia hora para o jogo começar.
A turismóloga do balcão

Agora sem pressa, Egberto queria fotografar... Retratou a turística senhora do balcão de informações, com seu coletinho azul, blusa amarela e animado sorriso, mais espalhado que o mapa gigante de Cuba que pendurou no balcão. De passagem, fez fotos de carregadores de malas e de taxistas disputando clientes, e só parou quando Leonil ameaçou (re)sequestrar a câmera e começou a empurrá-lo para a van, toda aberta, à espera.
Ora, faltava ainda uma paradinha, e que foi longa, para o câmbio... Com dois guichês abertos, a demora ficou por conta da indecisão dos viajantes: trocar dólares ou euros?... Decisão facilitada pela (re)lembrança de Raíssa, a de que Cuba, em resposta ao bloqueio americano, aplicava uma sobretaxa de 13% em cima do dólar, mas não sobre o euro...
Rolé, debochado, deu logo o mote:
- Guardem os dólares para as compras no Panamá!... Ou, quem quiser levar algum do bom, para a Colômbia!
E os tais CUCs?... O que significava CUC?... Bem, a maioria, sabendo apenas que era a grana que valia, trocou euros por CUCs, que depois se informariam dos detalhes. Agora, para aqueles brasileiros deslocados, era sair batido para o hotel, a mais imediata possibilidade de assistir na TV ao jogo inaugural da Copa, transmitido diretamente do Brasil, aquele distante país... 

O desfile das palmeiras
Pela janela da van, Egberto ainda enquadrou um desfile de palmeiras, antes de virar para dentro e dar a deixa:
- Quando a gente chegar ao hotel, tenho uma surpresa para vocês!
- O quê?... Férias?... Uma grana extra?...
- Ah, muito melhor!... Gente!
Lá fora, os comandantes da situação continuavam sendo, indiferentes às paixões humanas, o sol e o vento do Caribe.



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Leonil de Moura A gente sabe de tantas histórias de desvio de bagagens e de outras espertezas em aeroportos, que depois fiquei me perguntando: o que foi aquilo, afinal?... Uma demonstração de honestidade intrínseca ou o mero cumprimento do dever?... Uma amostra da cultura ética desenvolvida pela educação cubana pós-revolução ou, no ato, apenas uma atitude prática dos fiscais, para ninguém ficar mal com a chefia?...

Elói de Holanda Vc foi abençoado, irmão!... Certamente há gente piedosa entre os funcionários da alfândega. Encontrou profissionais sensíveis, que perceberam sua angústia. Talvez funcionários oficialmente ateus, mas há muita religiosidade natural no povo cubano. Naquele momento, deve ter baixado entre eles algum espírito caridoso, podes crer!

Eliete Barbosa Olha, acho que, se o Leonil de Moura se deu bem, foi na base da simpatia. Ou simplesmente porque é um grande ator. Sem uma boa cena, representando o papel de enrolado e perdidaço, ficaria no prejuízo. Até porque o Berto ia encher a paciência dele, hehehe... 

Rolé de Matos Achei muito esperta a sua escolha de quem seria o chefe, aproveitou bem a dica do racista, foi safo!... E depois a gente confirmou que Cuba mantém o padrão da maioria dos países latino-americano, essa reminiscência dos tempos coloniais: os descendentes das antigas elites, revolucionárias ou não, continuam no poder...

Russa Pimentel Tem razão, Rolé de Matos. Independente da proposta revolucionária e do esforço de sobrevivência ao bloqueio americano, permanece lá a velha diferenciação étnico-social latino-americana, com os cubanos de origem ibero-europeia (37%) mantendo o poder, enquanto a grande maioria da população é de ascendência africana.


Berto Triz Tonho E isso também vale para os descendentes dos povos originais (que lá quase acabaram), Russa Pimentel: a escravidão, na América Latina, é um fantasma vivo!... Até que há, agora, uma exceção, a Bolívia dessa era Evo Morales, que surpreende em matéria de democratização social e étnica do poder. E também pode ser o caso do Equador, apesar do presidente de padrão étnico "tradicional"... Porém, reconheçamos, Cuba, em relação ao Brasil, é um país socialmente mais justo (sem a nossa abismal má distribuição de renda) e tem um racismo que parece menos mortal (sem massacres de negros adolescentes pobres, por exemplo). E, aliás, nem se compara aos EUA, onde estão de volta, apesar do Obama, os grandes conflitos raciais dos anos 1960...

Gastão Cavalcanti Ok, tudo isso faz até sentido, mas, de minha parte, devo dizer que admiro a eficiência deste tal governo da elite cubana branca quanto a organizar o país diante das dificuldades que passaram. Podem ser "privilegiados", mas, pelo menos, ficaram no país e também passaram sufoco, em vez de caírem fora...

Russa Pimentel Taí, bem que valia a pena saber os percentuais de diferenciação étnica dos cubanos de Miami. Acho difícil que, lá, os negros sejam maioria...

4/22/2015

06 - Espantos no Caribe

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         No portão de embarque, tumulto... Na origem da confusão, a neblina matinal da Bogotá andina, que atrasara uma sucessão de voos. Os sete empacaram, desorientados. Do que se aproveitou Leonil para dar outro bote agoniado sobre Egberto:
- Atrasou demais, Berto!... Assim não vai dar pra assistir ao jogo do Brasil, e muito menos à abertura da Copa!...
- Calma, Leo... Dá tempo, sim, de ver o jogo...
- E isso se a TV cubana transmitir...
- Relaxa... Pega aqui a minha câmera, dá uma olhada nas fotos que fiz dos vulcões.
Nesse momento, embarcaram, arrastados pelos funcionários (que nessas horas a experiência se transforma em insuspeitada agilidade), passaportes e passagens aceleradamente conferidos. Perdida a hora da conexão no Panamá, a empresa aérea, por conta própria, remarcou as passagens, entupindo de desorientados o próximo voo para Havana. Tíquetes indicando os assentos lhe foram enfiados nas mãos e logo, quase sem pensar, estavam no bojo do avião, ocupando os lugares vagos das reservas originais, perfeita mistura dos dois voos. No aleatório sorteio das cadeiras, a trupe se espalhou, deixaram de aproveitar boa oportunidade de pesquisar personagens, a troca de impressões sobre os demais passageiros...
Naturalmente, a viagem foi um pouco apertada. Gastão ficou na altura das asas, do lado esquerdo; Raíssa e Egberto, quatro filas atrás, cada um de um lado do corredor; Leonil, na fila seguinte, à direita, cadeira do meio; Eliete, Elói e Rolé espalhados ao fundo. Na enxurrada seguinte, entraram os passageiros originais do voo, com evidente predominância de cubanos, e quase todos entupidos de enormes (e muitas) sacolas, bolsas e embrulhos. Tudo rápido e confuso, dois aviões entulhados em um só.
Para seu horror, Gastão recebeu o desconforto de um grandalhão, a seu lado e por sobre a cabeça, quando tentou enfiar no bagageiro (e conseguiu!) uma indisfarçável televisão de tela plana. Para Elói, de longe, a cena da TV entupida no bagageiro lhe pareceu chocante, e não tanto pela mecânica do ato em si, muito mais pela possibilidade de que fizessem compras no Panamá...
- O Panamá, para os cubanos, deve ser o que Miami é para os brasileiros...
Feliz, o monstro ainda alardeava o feito em altos brados, recebendo entusiástico apoio de um senhor de meia idade que neste momento se esforçava para ocupar a janela ao lado de Leonil, um típico espanhol que se demonstrou também cubano. Os dois, num castelhano de altíssima velocidade, falavam (e se divertiam) literalmente por cima dos passageiros e da balbúrdia que imperava na aeronave, e eram apenas dois, entre os muitos e animados comerciantes cubanos que dominaram o avião.
O cubano ao lado

No que os comissários de bordo completaram a conferência de que as poltronas estavam em posição vertical e as mesinhas fechadas, Leonil, recolhendo o espanto, dispôs-se a um aquietante sono de algumas milhas. Sair às quatro da manhã do hotel de Bogotá, trocar de avião no Panamá e embarcar para Havana quase sem pensar dá sono em qualquer um... Assim que o vizinho, felizmente, fechou a janela, dormiu profundo, mesmo chacoalhado pelas pinicadas da lã do paletó. Acordou, ainda (e sempre) entre o sonho e a mais febril imaginação, quando o vizinho, em gesto brusco, levantou a cortininha de plástico da janela. Susto luminoso que lhe invadiu a cara e atingiu vários outros passageiros. Cerrando pálpebras, olhou para baixo e através do contraluz do vizinho, encarou o descarado mar azul do Caribe. 
“O mundo continua um bom cenário!... O que a gente faz nele é que é uma droga de teatro!...”, pensou, em prudente silêncio, sem saber o quanto, com isto, se associava à percepção do mundo de seu velho amigo (às vezes chefe, às vezes mala) Berto Triz Tonho. Acordara entre insatisfeito e chateado, mais pelo efeito do paletó de lã, o desconforto de suas mangas volumosas e o calor que provocava, do que por falta de sono.
Paletó na mão

Não listava “acordar cedo” entre os seus maiores prazeres, mas, sabia: viagem não tem jeito, degringola qualquer costume... No geral, levava bem, dispunha-se a saltar da cama no que o despertador (agora, o celular) tocasse. Sabia, porém, que ainda pela manhã voltaria o sono a alcançá-lo, e todos (ele, o sono, os compromissos...) precisariam negociar. Quando necessitava demais do dia, afogava em café o sono mais persistente, e seguia em frente. Quando valia tudo para ficar ligado, esparramava, ao menos, água na cara. E sendo o momento meio morto, como no tempo obrigatório dos transportes, gostava de aceitar a ordem do corpo e simplesmente dormir.
No que Leonil acordava e lhe retornava um pouco de objetividade, crescia a desconfortável sensação de que, naquela excursão, nada do que fizessem daria certo... Sentiu como se, ele mesmo, estivesse a caminho do matadouro, boi consciente de seu fatiado futuro, mas, responsável, cumprindo compromissos. Desconfortável isso, e estava difícil também ficar à vontade naquele voo... Coubera-lhe, na poltrona ao lado, aquele sujeito agitado, meio assustado, muito branco, forte e atarracado, agora quieto, que exagerara na conversa com o parceiro de quatro fileiras à frente, durante a arrumação das compras que fizeram no Panamá, talvez seu chefe ou sócio mandão.
Leonil, que dormira bastante, quase uma hora, perdera o sono, reavivado talvez pela curiosidade, não tanto sobre cubano a seu lado. Lembrou-se da câmera de Egberto no bolso do paletó, as fotos dos vulcões. No que a ligava, deu uma espiadinha por sobre o ombro do vizinho e confirmou que sobrevoavam o mar, o que não lhe dizia muito... Pois, eis que surge na janelinha uma das poucas referências de chão firme em meio ao amplo mar interior do Caribe, a principal das ilhas Cayman, famoso e concorrido paraíso fiscal, e se espantou por completo: em vez do verde dos dólares, uma joia turquesa sobre cetim profundamente azul!
- Olha, que lindo!...
Ilha Cayman 

Leonil sacou rápido da câmera e bateu a foto, a única. E num rompante de entusiasmo quase juvenil cutucou o cubano desligado, que, custando a entender, o encarou por tanto tempo que perdeu por completo a chance de ver. E nem demonstrou muito interesse, mas agora Leonil se interessava por ele. Chamava-se Leonardo e vivia em Matanzas, a uns 100 km da capital, a caminho de Varadero. Seu negócio era um pequeno restaurante, bem perto da principal igreja da cidade. E logo Leonardo oferecia serviços, os seus, se passassem por lá, que a comida era muito boa, e também o do irmão, morador de Havana, dono de um táxi:
- Chama-se Fernando, mas é conhecido como El Gato. Desde pequeno é chamado assim, e parece mesmo um gato... Mas, pode confiar nele. Por exemplo, se quiserem ir a Varadero... Ele pega vocês no hotel e em menos de duas horas estão lá. E no dia seguinte vai buscar, é só combinar a hora.
- El Gato?... Leonil fez questão de demonstrar interesse, foi fácil guardar o nome na memória. Anotou o telefone no canhoto do cartão de embarque e continuou ouvindo o pequeno empresário cubano, evidentemente desejoso de lhe mostrar que Cuba era um belo país, onde se vivia bastante bem. A conversa descia animada no rumo de Havana até o piloto mandar apertar os cintos. Neste momento, o Leo cubano aproximou-se do Leo brasileiro, seu novo amigo que talvez nunca mais visse, e demonstrou que pretendia lhe dar, certamente, pelo tom sombrio e o volume baixo da voz, a sua dica final, a mais importante, e disse:
- Cuidado com os negros.
- Hem?
- Não confie em nenhum negro. Se um negro lhe oferecer alguma coisa, cuidado!... Eles são ardilosos. Não dá para confiar neles. Roubam...
Leonil, dada a seriedade do alerta, balançou por duas vezes a cabeça, gravemente. Leonardo, confirmando que lhe fora útil, nada mais disse. Alteou um pouco o rosto, desviou o olhar para a janelinha. Não trocaram mais palavras. 

Plantações perto de Havana
Lá em baixo, passavam campos perfeitamente retalhados, com, a cada trecho, pequenas aglomerações de casas, estufas e galpões, sempre um pequeno prédio ao centro.
A cidade de Havana rapidamente os envolvia, até pousarem no aeroporto José Martí. Taxiavam e, enquanto o atento Leonil reparava na predominância dos aviões da TAAG, as Linhas Aéreas de Angola, e nos russos da Cubana de Aviación, o apressado Leonardo já lhe pedia passagem, que o impositivo parceiro da TV no bagageiro, com voz de trovão (para irritação de Gastão) exigia a sua ajuda.

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 Leonil de Moura  O cara me surprendeu, com aquele conselho racista... Engraçado é que nem notou que eu não sou tão branco assim. Até gostei da sinceridade, confiou em mim. No Brasil, só de vez em quando aparece um branco com coragem de dizer isso, assim, na cara. Em compensação, são capazes de matar e esfolar com a maior naturalidade.


 Russa Pimentel  Ah, a mim não surpreendeu, não!... Havia naquele camarada, que parecia tão bonzinho, como há em muitos outros por aqui, camadas e camadas de colonialismo... Por mais que a Revolução, ou até mesmo a pobreza ou a riqueza, igualem pretos e brancos, e demais matizes, custa entrar nessas cacholas rústicas e presunçosas a percepção de que os homens brancos não passam de descendentes de homens pretos que a evolução humana, por falta de sol na Europa, tratou de embranquecer...

 Berto Triz Tonho  Puxa, foi bom vc não ter falado isso na cara dele!... A gente não podia começar nossa excursão por Cuba criando uma crise diplomática com os pequenos comerciantes locais...

 Gastão Cavalcanti  O que me surpreendeu foi o outro entupir no bagageiro aquela televisão enorme... Pombas, bem em cima da minha cabeça!... Pensei que ia levar com ela na testa...

 Rolé de Matos Ah, que nada... Mesmo de longe, percebi logo que cabia. O que me espantou mesmo foi ver os cubanos indo às compras no Panamá, e isso quando muita gente ainda achava que eles eram proibidos de sair do país... Bem, eu sabia que não era o caso, mas não imaginava que andavam fazendo compras no exterior, assim que nem os brasileiros, os pobres no Paraguai, os de classe média nos EUA, os ricos na Europa...

 Eliete Barbosa Sabe duma?... Se não fosse o bloqueio, os cubanos estariam fazendo compras em Miami, isso sim!... Desde que pudessem vender lá o seu artesanato, a sua música, até mesmo a sua sabedoria de vida, que eles são escolados. Quer dizer, isto se os cubanos de Miami deixassem...

 Berto Triz Tonho  Pois eu estava tão irritado com a chateação de esperar o desembarque daquela tralha toda, com o nosso grupo amontoado no fundo do corredor enquanto eles carregavam nos ombros os pacotes e as malas, que não senti que houvesse espaço para considerações político-econômicas, muito menos étnico-raciais.

 Russa Pimentel  Aposto que, apesar do cabelo liso, ele também tem pentelhos crespos, que nem praticamente todo mundo. Pentelhos deixaram de se tornarem lisos porque ficam quase o tempo todo escondidos, pelo frio ou pelos modos. Cabelo liso esquenta, é bom para resistir ao frio da Europa. Já o cabelo crespo refresca a cuca, forma uma camada de ar, um refrigério no verão. Pode estar certo de que fazia o maior sucesso lá na África equatorial há milhares de anos atrás...

 Gastão Cavalcanti Eu, hem, Raíssa!... Não fazia a menor ideia de que vc andava metida até a raiz dos pentelhos em teorias evolutivas... Dessa vez, foi fundo!

 Elói de Holanda  Raízes, meus caros, raízes!... Nas raízes, ninguém se difere, nem pela cor, nem pelo nome. E quando nasce ninguém é racista. Adoro aquelas fotos, que rolam na internet, de crianças pretas e crianças brancas brincando na maior naturalidade... Pena que minha alegria dura pouco: imediatamente lembro da capa do LP do Milton Nascimento, os dois garotos, preto e branco, agachados, conversando, e da música em que brincam juntos até que o branco vai para a cidade, e quando volta, já crescidos, um é o dono e o outro só trabalha...

 Leonil de Moura  Na verdade, eu estava mais interessado era naquela TV grandona. Cheguei a pensar em surrupiar do grandão cubano, não queria perder a abertura da Copa por nada!... E nem tinha certeza se iam transmitir para lá...

 Rolé de Matos  Tu é muito otário!... Pra quê que o cara ia trazer aquele trambolho do Panamá, se em Cuba não tivesse canais de TV para assistir?...


 Leonil de Moura  Tudo bem, eu sabia que tinha TV. Mas, sei lá, podia ser que eles só assistissem jogos de beisebol...

4/16/2015

05 - Performance nebulosa

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          Uma noite sanduíche. Uma noite bate-pronto. Uma noite meio... Enfim, uma noite mal dormida. Chegar ao hotel às 21h, dormir às 22h e acordar, para viajar, às 3h da matina, se isto não foi melhor do que simplesmente perder o sono, foi, pelo menos, pouco sono... E, sem dramas nem contestações, a mesma van que os recolhera, esbagaçados, no El Dorado, se encarregou de devolvê-los, estremunhados, ao aeroporto.

Coisa muito nebulosa... Nem raiara o dia e já se adivinhava um sol encoberto por uma aparentemente definitiva névoa. O anfiteatro dourado continuava aberto, madrugada a dentro, aos atores, que desperdiçaram mais esta chance de sucesso. Os sete seguiram sonados até o embarque, que já estava na hora, todos sonhando, por incrível que pareça, com a apertada maciez das poltronas do avião. 
El Dorado nebuloso
O voo até o Panamá, já sabiam, durava pouco mais de uma hora, que se aproveitasse ao máximo o conforto. E realmente, no que se aboletaram nos lugares escolhidos, cada um imediatamente recomeçou o sono do mesmo ponto em que fora interrompido, na madrugada, pelos próprios celulares, com o necessário reforço do telefone da recepção do hotel.
Muito tempo depois, perceberam que a decolagem custava a acontecer, que o dia amanhecia, que clareou, que continuavam ali, grudados ao chão do El Dorado. O aviso de que precisavam aguardar a dissipação da neblina, com previsão para mais uma hora, ajudou a reforçar o sono. E, enfim, como a demora ultrapassou duas horas e meia, colocaram o sono em dia: o dia finalmente começava.

Apenas se livraram da enjoada espera no avião, sob a neblina total do El Dorado, purgatório que durou quase toda a manhã, vem a decolagem, rápida curva à direita sobrevoando Bogotá e, logo, a cordilheira dos Andes tomou conta das cenas da janelinha da aeronave, a partir daí a melhor TV, ao menos para Egberto.
Neblina na pista de Bogotá
Rapidamente surge, e ganha absoluto destaque, um digníssimo vulcão, um belo cone vulcânico, versão simplificada, pelo menos na imagem, de seu correspondente japonês, o monte Fuji. Um vulcão ao estilo clássico: o cone da montanha, as raias laterais alternando lava e neve, o cume embranquecido e a perfeita pontaria vertical. O bico de pedra apontando para o céu, no qual, cumprindo seu destino, despejará, ainda muitas vezes, as entranhas ferventes da terra. Um belo vulcão, na cordilheira Central da Colômbia: só podia ser, pelo mapa da revista de bordo, o Nevado del Ruiz.

- Bum!...
Da janelinha ao lado, enfiando a cara na fresta entre a poltrona e a parede do avião, Rolé, com um susto, trouxe-o de volta ao voo.
Vulcão não é brinquedo, não para o ser humano, certamente... Vulcões têm raízes profundas na terra, que, um dia, regurgitará. Ou não, caso seu fio de fogo seque. Só à distância são tranquilos. Ficar longe, o jeito de não sentir
Nevado del Ruiz, Colômbia
medo e admirá-los melhor. Do avião, vista panorâmica, dá belas fotos... 
Egberto, atento, logo depois descobre outro. Menos espetacular, respeitável o bastante, vulcão de cone aplastado, disfarçado pela neve suja. E que lhe importavam os nomes?... Consultaria mapas. Brasileiro carente destes excessos geológicos, agradecia aos céus (e às profundas forças da Terra) a oportunidade de encará-los pelos vidros embaçados da janelinha do avião, a esta altura de sua vida, felizmente, muito longe dos livros escolares...
Até uma cordilheira passa, e vem o litoral, uma espichada planície litorânea sem acidentes reconhecíveis, a pacífica costa da Colômbia, pelo menos àquela altura e diante de seu profundo desconhecimento da história da região. Tão rápido assim, surge um jogo de ilhas panamenhas, minúsculos paraísos tropicais. Destinos turísticos particulares, imaginou, observando a magra povoação dos lugarejos, alguns ao lado de pistas de pouso cuidadosamente encaixadas.
Daí, o largo espaço do golfo do Panamá e, nele, mais uma vez, o mar de navios!... Um surpreendente estacionamento de navios, a maioria visivelmente vermelhos, todos espalhados pelo verde-azul do oceano, aglomeração que se antecipava à própria visão do continente, ainda distante.
- Ora, este estoque de navios... Só pode ser a fila da travessia do Canal do Panamá!
E onde começava a fila? Aliás, onde começava o canal? Resposta imprecisa, e nem deu tempo de pensar: no que o avião avançava, torres brotavam no litoral!... Sim, Panama City, a versão centro-americana das cidades-espetáculo, as da península arábica, Doha e Catar, do outro lado deste mundo global... A manhã da capital panamenha também se cobria de névoa, a distância era grande, mas Egberto jamais perderia a oportunidade de fazer umas fotos, pena não poder pedir a supercâmera de Raíssa, que dormitava. Apelou para a quase sempre à mão camerazinha prateada, embora prejudicada, há meses, por um lanho na lente... 

Panama City, geral do Centro da cidade
As primeiras fotos mostravam, ao longe, palácios brancos de névoa, confusos sonhos urbanos. No que o avanço da descida retirava do seu ângulo de visão a ponta da asa, a cidade-paliteiro mostrou-se por inteiro. Apresentava-se como uma barreira de prédios que cercava o litoral, dele separando o aglomerado rasteiro que se via ao fundo, o que um dia fora a cidade normal, com casas e sobrados, talvez prédios de alguns andares... Era imensa, descomunal, a proporção dessas construções. A fieira de prédios na costa, impactantemente brancos na sua maioria, não parecia atender a uma necessidade humana, local e popular, de moradia ou trabalho, mas a um forte desígnio de poder: extrapolavam a expectativa normal... Representariam melhor, e mais, um possível cenário de filme-catástrofe, não uma necessidade de lar ou de labor.
E passavam rápidos... O avião se aproximava do solo, a poucos instantes de cruzar a linha do litoral, na direção exata do aeroporto Tocumen, ficava para trás o aglomerado pontudo de prédios, o grande bloco da massa principal de edifícios, evidentemente o centro da nova cidade. Pequeno lapso de voo e lhe aparecia outra formação de prédios, alguns quilômetros à frente, na estrita linha do litoral, 40 ou 50 andares cada, se não mais, um subcentro arquitetônico da cidade. Cidade de ambiente peculiar: em vez de praias e ondas, a lama de mangues, “manglares e humedales” da baía do Panamá, extensas e largas faixas de lodo, espécie de fundo de mar à espera de melhores marés...
Panama City, expansão da cidade

    Chegaram a Tocumen, onde sentiram-se veteranos, ainda que pisando apenas pela segunda vez as passarelas comerciais do aeroporto de Panama City. Para quem só faz conexão e, assim, não entra no país, Tocumen não passava de uma grande avenida de lojas secundadas por uma sucessão de portões de embarques. A caverna de Platão sem as sombras, substituídas pelas cintilantes luzes das melhores grifes e das mais famosas marcas mundiais. Cada uma, em caverna própria, todas elas guardadas por lobos-vendedores famintos, na disputa de clientes-ovelhas. Realmente, os turistas pareciam carneirinhos, tangidos aos voos de destino por lancinantes avisos sonoros e espalhafatosos luminosos amarelos. Nem todos, que os que têm tempo e ganância, por conta própria se deixam levar às caixas registradoras das lojas, basta que sigam as pistas expressas em dólar.
         Exatamente os bens que faltavam aos zás-brás: dólares e tempo... E o tempo, naquela hora, era o mais valioso. Por conta (e custo) do nevoeiro em Bogotá, mais de duas horas de atraso, perderam o voo das 9:16h, seriam compulsoriamente embarcados no seguinte, o das 12:57h. Com isso, a proposta de Rolé, de improvisarem um laboratório teatral (nada mais do que entrar nas lojas desfilando uma atitude olímpica, sem reparar nas ofertas, sem falar com vendedores, entrar e sair como zumbis), esta ideia tão útil à causa teatral, ficou prejudicada.
Mal tiveram tempo de olhar as lojas, mas Rolé não deixava de olhar as pessoas... Notou uma personagem estranha circulando pelas lojas de Tocumen, uma figura desentocada da sua infância televisiva, e rapidamente desconfiou da presença de outro grupo teatral (que, imaginou, certamente também iria a Cuba), e, mais, também fazendo uma performance!...
Deu meia trava para conferir melhor, até que, sempre olhando para trás, deu uma corridinha, que precisava de testemunhas, e pegou Leonil, o mais retardatário, pelo braço:
Topo Gigio nos perfumes
- Vem comigo, vamos voltar, está logo ali, o Topo Gigio no meio dos perfumes!...
- Tá maluco?
- Cara, puro teatro!... 





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PaCuCoBras [grupo fechado] – Comentários:

Russa Pimentel Que bobagem, Rolé!... Devia ser uma fã fora do tempo ou, melhor, fora de moda... Nada a ver com um grupo de teatro. Pelo menos, pelo que sei, não se viu ninguém contracenando com ratazanas no Festival de Havana.

Rolé de Matos Tá certo, não rolou... Agora, sinceramente, aquele Topo Gigio de feltro circulando pela loja de perfumes, sei não... Deve ter algum sentido profundo, que na hora me escapou: não dá para creditar o fato apenas à estranheza humana...

Berto Triz Tonho Vejam só, um ratão perfumado!... Que bobagem, cara!... O que me impressionou mesmo no Panamá, à primeira vista, foi o próprio perfil da cidade, e depois mais ainda. Teatro por teatro, aquilo lá, fora os dramas, é que é o tremendo de um cenário!...

Gastão Cavalcanti Um verdadeiro “paredón” capitalista!... 


Rolé de Matos Olha, tem toda razão: o paredão de prédios me impressionou mais do que os vulcões.

Leonil de Moura Tem muita grana enterrada ali. Aliás, algumas daquelas fachadas podiam ser folheadas a ouro. Ou a dólar...

Elói de Holanda Até hoje me pergunto de onde veio todo esse dinheiro... Tenho certeza de que não caiu do céu!... Até porque, se fosse o caso, ao povo lá bastaria recolher a grana do chão e certamente estariam vivendo melhor.



Eliete Barbosa Ó, aviso logo, hem, hehehehe: não fui eu que mandei construir a parede de prédios!... E também não fui eu que mandei o Topo Gigio comprar perfumes!... Nem tudo é culpa minha...